25.3.07

A Europa foi a grande utopia da segunda metade do século XX

Teresa de Sousa (PÚBLICO) Graça Franco (RR), in Jornal Público

A confiança do ex-Presidente Mário Soares na Europa, a que chama a utopia realizada, continua a ser total. E nos homens também.

Mário Soares é o homem a quem Portugal deve o seu destino Europeu. Foi um dos grandes protagonistas da história nacional mas também da História da Europa nos últimos anos. Numa era de lideranças fracas e de crise, ninguém melhor do que ele, que conviveu com alguns dos grandes líderes europeus, para nos falar da Europa e do mundo, quando passam hoje precisamente 50 anos sobre a assinatura do Tratado de Roma.

É uma honra tê-lo aqui a dois passos dos Jerónimos onde assinou o Tratado de Adesão de Portugal...

Muito obrigado pelas suas palavras amáveis. Mas permita-me que corrija só um pequeno ponto. Diz que fui o homem que fez isso tudo. Mas realmente a Europa foi uma ideia muito consensual em Portugal e muita gente trabalhou para a nossa adesão, de todos os governos não só daqueles a que presidi. Todos eles fizeram muito pela Europa e eu não me posso deixar enfeitar com penas de pavão...

Penso que a História lhe reconhece todas essas penas que não quer. A União Europeia pode ser vista como um bom exemplo da força de uma ideia, que alguns homens de uma geração da pós-guerra partilharam, de uma Europa unida capaz de viver em paz e em prosperidade?

Eu fui sempre europeísta, já na luta contra o salazarismo. Sempre tive a convicção de que logo que tivéssemos a democracia devíamos entrar na Europa. Segui muito o Movimento Europeu desde os seus primórdios e quis mesmo formar aqui uma pequena delegação do movimento. Não foi possível porque nada era possível nessa altura. Mas como é que uma ideia que ia contra a corrente do que se pensava na Europa consegue transformar-se numa coisa tão extraordinária?Percebi logo depois da guerra que era fundamental haver um novo sistema de alianças para evitar uma futura guerra mundial. Eu vivi a guerra. Primeiro a guerra de Espanha, depois a II Guerra. O horror do foi essa guerra, os campos de concentração, os milhões de mortos, tudo isso, a devastação da Europa.

Foi isso que inspirou afinal os pais fundadores?

Foi isso que os inspirou mas, mesmo antes disso, já havia um movimento pró-europeísta. Havia já alemães e franceses que percebiam que era preciso uma entente entre os dois países para evitar futuras guerras. Mas só foi possível fazer isso depois da II Guerra. O Churchill, logo no Congresso da Haia (em 1948) deu como que o apito de saída, dizendo que era preciso fundar os Estados Unidos da Europa, embora tenha acrescentado que a Inglaterra era outra coisa. Foi um erro dele. Foi o mesmo Churchill que disse: "Eu não estou à frente do Governo de Sua Majestade para assistir ao fim do Império Britânico". Assistiu. Teve de assistir porque estava na ordem das coisas. Como nós tivemos de perder o nosso. O que é que Portugal seria neste rincão tão bonito mas pequeno, depois do choque da perda das colónias, se não tivéssemos esse destino europeu?

Quando foi assinado o Tratado de Adesão, vivíamos na segunda geração de grandes líderes europeus. Kohl, Mitterrand, Willy Brandt e Spinelli, que o senhor conheceu bem. Que ideia guarda desse homens, que diferença fazem das actuais lideranças?

A história é assim. Há anos bons e anos maus. Costumo dizer que há anos para bons políticos, como há anos para bons vinhos. Talvez os acontecimentos e os desafios façam os grandes homens, aqueles que nós apreciamos. Citou alguns deles. Foram homens de excepcional craveira e perceberam o interesse do seu país e como era preciso entenderem-se. E também perceberam que a Europa, que foi o centro do mundo desde o século XV, entre os dois grandes colossos na altura, os Estados Unidos e a União Soviética, não seria nada se não estivesse unida. A Europa e o movimento europeu foram a grande utopia da segunda metade do século XX. Evidentemente que o socialismo é uma utopia e continuará a ser. Mas a utopia que mais foi concretizada durante estes anos foi a utopia europeia. Eu costumo dizer que não há ninguém de esquerda que não seja também europeu. Se a esquerda não é europeia não é nada. Foi a utopia realizada do século XX.

Hoje com os sinais de crise e com um mundo completamente diferente daquele em que a UE nasceu e se desenvolveu, essa utopia ainda é realizável?

Acho que é. Está em pane, está num impasse, numa grande dificuldade, mas já atravessou outras. Esta talvez seja das maiores, mas vai ultrapassá-la, não tenho a menor dúvida, porque seria um acto de insensatez tão monumental.

Mas os homens fazem muitas vezes actos de insensatez...

Sobretudo os ditadores. Estou convencido que a força das coisas é muito grande... Seria para nós europeus e para nós portugueses uma tragédia que a Europa entrasse em colapso. O que aconteceria é que, dai a pouco, estaríamos de novo envolvidos numa guerra.

Diz que grandes crises e grandes desafios fazem bons políticos. Por essa conclusão estaríamos a ver despontar alguns, como a actual chanceler alemã...

A actual chanceler alemã é uma das pessoas que mais admiro neste momento na Europa, como estadista. É muito europeísta, muito concreta, muito séria do ponto de vista das suas ideias. É democrata-cristã mas a Europa foi feita pelos democratas-cristãos e pelos socialistas. Tem demonstrado um fervor europeu extraordinário E sendo a Alemanha o maior país da Europa, até podia ter algumas pretensões. Mas, entalada entre a Rússia e o resto da Europa, a Alemanha percebe que só pode ser grande e sexercer efectivamente uma grande função, no quadro europeu e se for campeã da Europa.

Acha que a chanceler está a fazer bem ao querer resolver de uma vez a questão da constituição europeia?

Apoio-a a 100 por cento. Acho que há condições para voltarmos à Constituição. Se não lhe quiserem chamar assim, podem chamar-lhe outra coisa. É uma questão pragmática. Desde que institucionalmente o problema esteja resolvido para poder depois avançar-se. Penso que Portugal e Espanha têm um papel importantíssimo a desempenhar. É uma sorte termos dois primeiros-ministros socialistas. Quando falou de figuras europeias, acho que hoje o primeiro-ministro espanhol é uma grande figura da Europa e está a desempenhar um grande papel para Espanha, para a Europa e para a Península Ibérica.

Embora com grandes problemas internos, com o terrorismo, que o enfraquecem...

E que se resolvem melhor no quadro europeu. A Espanha tem uma tradição de autoritarismo e de centralismo e tem que ultrapassar esse problema, como nós ultrapassámos o colonialismo

Mas como qual é o papel que espera dos dois países ibéricos?

Espero que possamos ter um papel de grande protagonismo na Europa na medida em que sabemos muito bem o que é o Atlântico e o que é o Mediterrâneo e o que é a América Latina. Com estas relações e com as nossas relações com África, estamos em condições de dar um enorme contributo europeu.