23.3.07

Habitação direito ou quê?

Manuel Correia Fernandes, in Jornal de Notícias

A Constituição da República Portuguesa consagra, no artigo 65.º, o "direito à habitação" para todos como direito fundamental. Isto significa que um tal direito não está ainda suficientemente entranhado e assumido na cultura e na consciência dos cidadãos e das suas instituições para que fosse dispensável inscrevê-lo na lei fundamental do país.

Do mesmo modo, não basta que idêntico direito esteja inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem para que o respeito por esse mesmo direito seja um facto universalmente reconhecido e praticado. Como também não basta que Portugal seja um dos signatários desta mesma declaração para que o seu cumprimento seja real.

Digamos, por isso, que, na melhor das hipóteses, se trata dum direito que é generalizadamente reconhecido ao nível do discurso, mas só se torna efectivo se se verificarem determinadas condições que a realidade se tem encarregado de demonstrar que continuam a não estar ao alcance duma parte muito significativa dos portugueses. De facto, alguns números do censo 2001 são mesmo arrepiantes e não podem deixar de nos fazer pensar 325 000 fogos degradados, 544 000 vazios e quase um milhão sem água canalizada, esgotos ou electricidade. A situação é, por isso, pouco menos do que caótica! Isto quer dizer que o direito à habitação considerado fundamental pela Lei fundamental da República não passa, ainda, dum direito muito condicionado!

O referido artigo 65.º da Constituição é, aliás, muito claro e incisivo quanto às formas de garantir o proclamado direito, impondo obrigações a todos os níveis de poder para que tal direito seja respeitado sem excepções. No entanto, a realidade é bem diferente. E a demonstrá-lo está o chocante caso das 16 famílias em risco de desalojamento do local em que habitam, vai para 20 anos, na freguesia de Campanhã, sem que lhes seja disponibilizada com tempo, humanidade e sentido de respeito pela lei (e pela justiça) qualquer alternativa real que não seja o já tradicional "conto" de que serão alojadas em pensões (!) até que lhes possam ser disponibilizadas casas.

Do que, efectivamente se trata, só os "autos" o dirão, mas ao Passeio Público não pode ser indiferente o facto de se tratar de famílias ciganas, alvo tradicional de "súbitas necessidades de requalificação" de áreas antes escondidas mas agora bem abertas e destinadas a outros fins, possivelmente também legítimos mas seguramente menos sociais! Uma sociedade saudável não pode conviver com esta barbaridade e se a lei está do lado da injustiça, cidadãos com a consciência do seu tempo só podem escolher outro campo da justiça!

Aliás, a questão da habitação não se resume às questões dos direitos e das leis em abstracto. É, sobretudo, uma questão de cultura, de onde não podem ser retiradas as várias dimensões que a caracterizam. Ora, uma dessas dimensões é a técnica, que - ao contrário do que aconteceu nos últimos anos - não pode prescindir duma dimensão ética que a sociedade fútil em que vivemos parece já ter relegado para o último dos valores.

A verdade é que esta questão do "bairro de ciganos" levanta uma questão que não tem sido tratada nem política nem tecnicamente e que, além dos números citados, revela um problema que os tempos que vivemos de globalização e de extrema mobilidade de pessoas e bens vai criar a muito curto prazo e que é o da produção de espaços de habitar adequados aos diferentes grupos sociais que passaram a partilhar, connosco o espaço das nossas cidades. E, das duas uma ou as nossas casas e as nossas cidades são capazes de acolher diferentes modos de vida e, portanto, diferentes modos de uso dos espaços, ou, a muito curto prazo, teremos novas e mais dramáticas "revoltas dos subúrbios"!