24.3.07

A higienização do Freixo

Amílcar Correia, in Jornal Público

As portas de entrada na cidade do Porto, com as suas imagens de decrepitude da escarpa dos Guindais, Fontainhas ou Freixo, recomendam tudo menos um safari fotográfico. Passeia-se pelo Douro e é impossível ficar indiferente à ruína e à decadência encavalitada naquelas escarpas. Razões que deveriam merecer uma atenção municipal idêntica àquela que, neste momento, é dispensada ao acampamento cigano de Bacelo, na zona oriental da cidade, no Freixo.

A justificação municipal para levar a cabo o despejo de 16 famílias de etnia cigana daquele local é tão aceitável para este caso como para qualquer outro que diga respeito a pessoas que vivem com "condições mínimas de habitabilidade", com "graves perigos para a integridade física dos ocupantes" e "focos graves de insalubridade, originados pelo amontoar de lixos, entulhos, escombros e objectos domésticos fora de uso". O que é válido para este acampamento do Freixo é igualmente justo para aglomerados com problemas semelhantes em outros pontos da cidade. Mas, mais uma vez, a forma como a câmara municipal lida com este caso e a pressa com que o quer resolver não são propriamente as mais eficazes e as mais respeitosas.

As 16 famílias ciganas de Bacelo habitam aquele local há 20 anos, os seus filhos frequentam os estabelecimentos de ensino da zona, pertencem maioritariamente à mesma família, pelo que constituem uma comunidade coesa e de algum modo integrada na freguesia que habita. O método arrogante e inflexível que a autarquia escolheu para tratar estes munícipes, a política do derrube custe o que custar, ignora que os mesmos têm, à semelhança de todos os outros concidadãos, o direito a serem tratados com dignidade e despreza todo o trabalho social até aqui realizado com aquela comunidade. E a pressão que foi exercida para que deixem o terreno permite duvidar das verdadeiras razões deste despejo: o Palácio do Freixo, que se transmutará numa Pousada de Portugal, não poderá conviver, por razões de elementar higiene pública, com a anarquia, embora sedentária, de um acampamento cigano. É daqueles casos em que as segundas intenções acabam por ser sempre as primeiras.

Quanto ao resto, já sabemos a história. A câmara tem procedido a realojamentos em pensões, transferindo o problema para a Segurança Social, e a permanência nestas acaba por se eternizar sem fim à vista. São muitos os casos de desalojados em pensões há vários anos sem que se vislumbre qualquer desfecho. É só uma outra forma de acampar. No caso em apreço, a transferência desta população para uma pensão da cidade, por especificidades sobejamente conhecidas, nem sequer é a melhor opção, pelo que uma eventual transferência para um segundo terreno, hipótese que a Junta de Freguesia de Campanhã e a Segurança Social estão agora a gizar, poderá ser a saída mais apropriada para o imbróglio.

Para tal, basta que a câmara municipal se comprometa a realojar esta comunidade ao fim de 60 dias, o mesmo prazo de tempo que a autarquia estipulava para apurar quais dos agregados preencheriam os requisitos exigidos para serem alojados em habitações sociais. Ao longo de cinco séculos, este país não foi capaz de integrar a comunidade cigana que o habita, seja porque esta não se quer integrar, seja porque ela é eternamente discriminada. Na verdade, a multiculturalidade não passa de um jargão sem sentido e a população cigana continua a ser encarada com o mesmo olhar de sempre: desconfiado e estigmatizante. Sobretudo quando os terrenos que ocupam se tornam tão apetecíveis.