15.4.07

Há cada vez mais desalojados "empurrados" para pensões

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Em 2006, a Segurança Social accionou esta resposta mais do dobro de vezes do que no ano anterior. Este ano, só de uma vez foram 47 pessoas


Perfeita Luz Divina dos Santos desperta cedo no quarto partilhado com o marido e os três filhos mais novos. Os dois rebentos mais velhos dormem no quarto contíguo. Mal as crianças entram na escola ou no infantário, Perfeita e o marido deslocam-se para o Freixo. Passam o dia ali, na rua, entre carrinhas estacionadas. Eles e outras 15 famílias que habitavam o aglomerado de barracas demolido pela Câmara do Porto a 27 de Fevereiro.

Perante tragédias mais ou menos inesperadas (desmoronamentos, despejos, incêndios, inundações, rupturas familiares), a linha de emergência social (144) tenta encontrar respostas imediatas para desalojados sem meios. E recorre cada vez com maior frequência ao alojamento temporário em unidades hoteleiras (leia-se pensões), como a que agora acolhe Perfeita. Usou esta resposta 303 vezes em 2005, 704 em 2006. E este ano já vai em 218.

A barraca outrora habitada por Perfeita dos Santos padecia de insalubridade e risco de derrocada. Com a barraca foram os móveis e os electrodomésticos que Perfeita não tinha lugar para guardar. Parece perdida. Na pensão, não pode lavar a roupa, nem cozinhar. Cozinha num pequeno fogão a gás montado na carrinha, lava a roupa no tanque municipal, conversa com os outros 46 moradores das antigas barracas, olha o nada. Ali, no estacionamento, a uns metros do terreno agora deserto (protegido dela e dos outros com uma cerca de arame.

O coordenador nacional da linha, José Amaro, sabe que o alojamento em pensão (algumas de duvidosa higiene) não é a melhor resposta. Nem para desalojados por despejo como Perfeita dos Santos, nem para idosos abandonados, nem para mulheres e crianças vítimas de violência. "Quem me dera colocar as pessoas em equipamentos integrados", diz. Ficariam "mais protegidas".

O total de respostas accionadas disparou (589 em 2005; 1248 em 2006). Não cresceu só o recurso a pensões, também a equipamentos, como centros de acolhimento temporário ou lares de idosos. Os equipamentos da Segurança Social, das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e das organizações não-governamentais (ONG) "estão lotados", refere José Amaro. "As pessoas não podem ficar na rua, temos de arranjar alternativa".

Nas primeiras noites, Perfeita dos Santos dormiu na carrinha, queixosa da insalubridade encontrada na pensão que lhe foi inicialmente destinada pelos serviços sociais. Para fugir a isso, algumas famílias conseguem alugar um "quarto de casa" ou apartamento de transição, com a Segurança Social a subsidiar parte ou a totalidade da renda (num máximo de 200 euros por mês).

O maior medo dos despejados é ver eternizar-se a resposta temporária. Como aconteceu, por exemplo, com Maria Adelaide: desalojada em Outubro de 2004, só em Março de 2007 saiu da pensão (ver texto). Já por isso, Perfeita e os outros habitantes do aglomerado de barracas do Bacelo/Freixo começaram por recusar o alojamento em pensão - como fizeram Ana Paula ou Maria Emília (ver texto). Preferiam esperar "nos barracos" pela solução definitiva.

Violência doméstica


Nalguns casos, a passagem pelas pensões é rápida. José Amaro dá o exemplo de mulheres e crianças vítimas de violência doméstica que encetam fuga durante a noite. A polícia alerta o 114, a família é instalada numa pensão. Algum tempo depois (na melhor das hipóteses, um dia depois), é encaminhada para uma casa-abrigo gerida por uma ONG ou IPSS e financiada pela Segurança Social. Noutros, o alojamento temporário arrasta-se durante meses, anos.

A linha actua nas primeiras 48 horas. Findo esse tempo, o caso pertence ao centro distrital de Segurança Social, sublinha o coordenador nacional. O 114 é um interface, é um pouco "como o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM)": a partir do momento em que o paciente dá entrada numa unidade hospitalar, a equipa do INEM perde o caso.

O Instituto de Segurança Social (ISS) não dispõe da estatística referente ao tempo de permanência nas pensões. Mas reconhece perda na equação custo-benefício. O Estado paga, por norma, dez euros diários por pessoa. Para alojar uma família como a de Perfeita dos Santos, com sete elementos e outro a caminho, despende cerca de 2100 euros por mês. Para alojar os 47 elementos que moravam nas barracas do Bacelo/Freixo mais de 14 mil euros.

Há um fosso entre o que é e o que deveria ser. O alojamento, vinca a porta-voz do ISS, Helena Silveirinha, é, por definição, temporário. No plano do deveria ser, o Estado paga os primeiros dois a três meses de alojamento. Até a pessoa se organizar (alugar uma casa no mercado regular ou ser realojada pela autarquia da sua área de residência). Na prática, há famílias que "não conseguem" (por incapacidades várias) autonomizar-se. E até há as que "não querem".

As dificuldades podem acumular-se. Algumas famílias não encontram quem lhes sirva de fiador. Com membros de etnia cigana acresce o estigma. Uma última nota: O alojamento de emergência é tendencialmente mais solicitado nos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal e Faro, por esta ordem. Este ano, o Porto (199 processos) vai à frente de Lisboa (184). José Amaro diz que é por causa dos despejos do Freixo/Bacelo. Uma situação que, conforme o acordo assinado entre a câmara e a Segurança Social, tem um prazo de resolução de 60 dias. Perfeita Luz Divina dos Santos está a contá-los.

As 16 famílias do Bacelo/Freixo enchem os dias de espera. Sem a sucata para tratar, resta-lhes a lida doméstica na rua.