30.5.07

Mais de um milhão com emprego em risco se aderirem à paralisação

Clara Viana, in Jornal Público

O contingente dos trabalhadores precários está em alta. Para eles, fazer greve pode equivaler a perder o trabalho. Os sindicatos também têm que mudar


Em Portugal existem hoje mais de um milhão de trabalhadores que não podem fazer greve sem correr o risco imediato de perder o trabalho. Já lhes chamaram os trabalhadores do século XXI: são os contratados a prazo, os falsos recibos verdes, os temporários, os subempregados. Um contingente que tem vindo a aumentar à medida que se consolidam duas das tendências do mundo do trabalho actual. Nas empresas, há cada vez menos efectivos e cada vez mais serviços externos, frequentemente disponilizados por firmas de trabalho temporário.

As últimas estatísticas disponibilizadas pelo INE só confirmam a tendência. Estão em curso dois movimentos inversos, mas que falam do mesmo. Duas faces da mesma moeda. Durante o primeiro trimestre de 2007, por comparação ao mesmo período do ano passado, o universo "mais feliz" dos trabalhadores por conta de outrem com contratos de trabalho sem termo, isto é, os que não estão a prazo, perdeu 75 mil efectivos (passou de 3122,8 milhões para 3047,7), enquanto o número dos que vivem com contratos com termo disparou 10,6 por cento (de 583,8 mil para 646,7 mil). Os chamados "trabalhadores por conta própria como isolados", de onde saem os falsos recibos verdes, contabilizavam 883,6 mil indivíduos, menos 0,2 por cento do que no primeiro trimestre de 2006.

Este efeito dos chamados downsizing e outsourcing tem sido ignorado pelas contratações colectivas. Resultado: mais de um quinto da população empregada (que era de 5135,7 milhões de indivíduos no primeiro trimestre de 2007) encontra-se hoje inibida de exercer um direito constitucional.

Sem direito, sem sindicatos

"Quem trabalha debaixo de um falso trabalho independente não pode fazer greve. Não pode ter uma gravidez de risco. Não pode fazer férias. Não pode necessitar de uma intervenção cirúrgica. Para usufruir de qualquer um destes direitos fundamentais, adquiridos ao longo de anos de luta, pelos quais milhares de pessoas lutaram e algumas feneceram, estas pessoas correm o risco de perder o trabalho", diz Cristina Andrade, uma jovem psicóloga, mas já veterana da prestação de serviços a recibos verdes.

Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, fala de uma "cultura empresarial que tornou a retaliação num dos instrumentos de gestão mais utilizados hoje em dia". Ele, que tem passado grande parte da sua vida nos tribunais, não tem dúvidas de que o perigo de perder o trabalho é bem real para quem se encontra em situação precária e decida, apesar disso, fazer greve.

O mundo do trabalho está mais desigual. Há os que têm cada vez mais trabalho, mas que são cada vez menos; e os que não têm trabalho, e são cada vez mais. Os que têm direitos e aqueles que não os têm. E os sindicatos, hoje, são parte do problema, acusa Garcia Pereira.

O advogado tem palavras duras: "Acantonaram-se a palavras de ordem e políticas que estão completamente deslocadas no tempo." Fazendo jus à sua "tradição corporativa", tornaram-se sobretudo em "estruturas de defesa dos interesses dos que têm a felicidade de ainda estar no mundo do trabalho, desinteressando-se dos que já lá não
estão e dos que ainda lá não chegaram".

Cristina Andrade e Tiago Gillot, licenciado em Agronomia, a fazer um estágio profissional e um dos organizadores da primeira parada Mayday - desfile de precários - em Portugal, não são tão acutilantes. A psicóloga lembra que há "profissões onde o precariado alastra, designadamente o trabalho a recibos verdes, mas que esta situação não se transformou ainda na luta principal dos sindicatos da função pública, dos professores, dos jornalistas". Tiago Gillot admite que "falta uma resposta" que permita fazer face às dificuldades de reivindicação sentidas pelos precários.

"São muito poucos os que vão poder aderir à greve, mas isso não quer dizer que não estejam com ela", acrescenta. Cristina Andrade: "Cerca de quatro milhões de trabalhadores em Portugal têm o direito e a possibilidade de fazer greve. A luta dos direitos laborais é uma luta de solidariedade. Seria muito recompensador para quem trabalha com falsos recibos verdes se, numa greve geral, os que optarem por exercer o seu direito à greve se lembrarem de todos os que a não podem fazer e fizessem a greve também por eles."

No novo mundo, a luta também se faz por procuração. Cristina Andrade e os outros membros do seu blogue/movimento FERVE (Fartos destes recibos verdes) vão estar nas ruas do Porto a lembrar que existem. Ela deixa uma sugestão aos sindicatos: "Informar quem vai a um museu, a um Centro Novas Oportunidades, a uma clínica veterinária, ao teatro, a um gabinete de arquitectura, a um centro de formação, a um projecto de intervenção comunitária ou a uma universidade sobre as condições de trabalho de quem está do outro lado". "O silenciamento a que esta população está votada apenas permite arrastar ad eternum o usurpar dos seus direitos", defende Cristina.

A verdade é que eles, os precários, estão por todo o lado. Garcia Pereira fala de uma "nova exigência". Defende que é "possível mobilizá-los", mas que para tal "os sindicatos terão de mudar completamente". De objecto, de tácticas, de meios, de mundo. Já não há mais "cinturas industriais, onde bastava um automóvel e um megafone para agitar as massas". Agora é o tempo das novas tecnologias e um sms, muitos sms, podem fazer a diferença, diz o advogado, apontando o exemplo da vizinha Espanha e da manifestação que foi a causa próxima da demissão de José Maria Aznar, na sequência dos atentados de Madrid.