24.5.07

Projectos para tirar ciganos da sombra

Inês Cardoso, João Girão, in Jornal de Notícias


Olga Mariano integra um grupo de mediadoras sócio-culturais. Foi esse grupo a base da Associação de Mulheres e Crianças Ciganas


Se calhar foi sempre uma mulher um pouco à frente do seu tempo. Olga Mariano sorri ao recordar "o burburinho" que a rodeou por ter sido a primeira cigana a tirar a carta, logo que fez 18 anos. Na conservadora década de 60, a sua atitude foi considerada "chocante".

Quando há sete anos, juntamente com quatro colegas num curso de mediação sócio-cultural, decidiu fundar a Associação de Mulheres e Crianças Ciganas Portuguesas (AMUCIP), a iniciativa não suscitou tanto alarido, mas igual desconfiança. Só há pouco mais de um ano, quando a ousadia resultou na conquista de uma sede no bairro da Cucena (Seixal), a comunidade se rendeu. "Haver algo palpável fez com que ganhássemos estatuto".

Dentro, mas também fora da comunidade, as "amucipianas" são apontadas como "um marco histórico". Quem o diz são os três elementos do Gabinete de Apoio à Comunidade Cigana (GACI) do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME). Porque, sublinha Luís Pascoal, "até agora tínhamos muita gente a falar dos ciganos, mas poucos ciganos a falar". E pelas mulheres passa, acrescenta Helena Torres, "a capacidade de mudança".

Com cinco meses de existência, o GACI está ainda a consolidar o seu programa de acção, mas apresenta hoje o primeiro fruto visível do trabalho um guia de apoio ao associativismo cigano. No próximo mês será lançado um site cuja ambição é facilitar a criação de uma rede dos projectos existentes no terreno.

Para já, o GACI identificou 18 associações ciganas com existência legal e iniciou contactos com cada uma delas. "Admitimos que a realidade seja bem diferente do que existe registado", sublinha André Jorge, também do gabinete. Mais do que o reconhecimento formal das associações - que poderá implicar "eventualmente legislação e apoio financeiro específicos" -, o objectivo é "chamar à participação".

Discriminação máxima

O discurso inclusivo esbarra numa conclusão comum a todos os inquéritos os ciganos são o maior alvo de discriminação racial em Portugal. Em Março chegou nova confirmação, com o Eurobarómetro a mostrar que só a orientação sexual preocupa mais que os ciganos. Já quanto a imigrantes, Portugal surge bem colocado, logo atrás da Suécia.

O problema é histórico? Sim, tem cinco séculos de legislação e medidas de extrema violência (ver ficha). E europeu? Depende das perspectivas. Na Europa a 27, em que os ciganos são de longe a maior minoria étnica - 10 a 12 milhões -, a pressão para novas soluções é crescente.

Contudo, o antropólogo José Pereira Bastos, uma das vozes mais críticas em defesa dos portugueses ciganos (ver texto ao lado), afirma que este é um problema incómodo (também) fora de portas. "Faço parte de uma rede de excelência de investigação das migrações (IMISCOL) e fiz tudo para que a questão dos ciganos aparecesse, mas é um assunto tabu", lamenta.

Até os números são tabu, porque a Constituição não permite o recenseamento. Uma "hipocrisia nacional", dispara Pereira Bastos. "Quando interessa, a pretexto de se evitar a discriminação, não há ciganos. Quando faço investigação, das escolas a serviços sociais, toda a gente tem dossiês sobre ciganos".

O cruzamento de trabalhos de campo tem fixado o número em cerca de 50 mil. Luís Pascoal alega "estar mais preocupado com o que se faz, do que com a quantificação". Uma das prioridades é o incentivo à escolarização e a "capacitação para a vida no século XXI". Estão identificados 16 projectos do programa Escolhas que envolvem ciganos (cinco na região Norte, igual número a Sul e seis no Centro). Valorizar experiências e "dar formação sobre cultura cigana aos professores" são algumas metas.

Olga Mariano e as colegas "amucipianas" têm desempenhado esse papel em escolas, hospitais e outros serviços que "lidam regularmente com ciganos". Conhecem de cor o problema do absentismo e por isso todos os dias acolhem na sua sede crianças a quem dão apoio escolar. Mas as actividades vão muito mais longe e abarcam toda a comunidade. Criaram um grupo de dança (As Zíngaras), fazem teatro, promovem tertúlias sobre temas concretos como a higiene ou o emprego.

Com 35 anos de vida passada em feiras, Olga Mariano sabe que "a venda é uma actividade em extinção". Não se cansa de passar, entre "os seus", a mensagem de que não deixam de ser ciganos por terem outras profissões. "Sou exactamente a mesma pessoa, respeito as leis ciganas e tenho o respeito dos meus", exemplifica. "Se não tivesse esse respeito, não estaria aqui".

Não basta, contudo, querer. Catarina Marcão trabalha num dos referidos projectos do Escolhas, na Ameixoeira (Lisboa). Chega a acompanhar jovens à procura de emprego. A recusa, perante um cigano, "é real". Não faltam, por isso mesmo, muitas vozes desconfiadas do "paternalismo" de entidades públicas, como José Falcão, da associação SOS Racismo "Há alternativas apresentadas por associações ciganas a quem não é dado apoio".

Que o diga a associação APODEC, obrigada a suspender o projecto formativo Oficinas Romani por falta de financiamento. Ou a Associação de Música, Canto e Dança Cigana, há um ano e meio sem sede por causa da mudança promovida, pela Câmara do Porto, do bairro S. João de Deus para o Lagarteiro.

"Temos lá os nossos quatro contentores e pedimos que os transfiram, mas até agora nada", lamenta o presidente, João Maia. Que acrescenta já ter pedido ajuda ao ACIME e à Pastoral dos Ciganos. "Estamos parados, a ensaiar na rua, e entretanto já nos roubaram material de som e fatos antigos, porque a sede está ao abandono".

Igreja de Filadélfia cativa e assume papel integrador

Há quem a chame igreja étnica, pela forma como se aproximou do povo cigano. A Igreja de Filadélfia Evangélica (Cigana, acrescente-se entre parêntesis, apenas para distinção de outros ramos do culto evangélico) é apontada como a religião maioritária dos portugueses ciganos. Talvez, como refere o pastor Sidney (renascido com esse nome há cinco anos, quando foi "ordenado"), porque a linguagem é adequada à realidade e problemas sentidos pelos ciganos. Ou porque a música, embora com muitas raízes, vai também beber aos seus ritmos. "Sendo nós, muitos dos pastores, também ciganos, conhecemos bem aqueles a quem nos dirigimos". Actualmente nas Galinheiras (Lisboa), onde desenvolve um projecto de apoio a sem-abrigo, já andou por diversas localidades dos distritos de Santarém e Setúbal. Acredita que "a igreja tem tido um papel muito importante na educação do povo cigano". Sem quebrar tradições essenciais, mas também sem receio da mudança. "Temos alterado a forma de viver e estamos menos isolados", acredita o pastor. Jair Gouveia, de 26 anos, partilha da opinião de que "a igreja tem ajudado muitas famílias ciganas" e feito mais pela integração do que muitos projectos oficiais. Actualmente existirão 90 a 100 igrejas espalhadas pelo país, muitas delas em tendas improvisadas. A organização por sete zonas é presidida, a nível nacional, por um presidente eleito anualmente. A ligação à igreja Católica "é quase nula", embora de "grande respeito".

Partidos rejeitam políticas de discriminação positiva

"Em Portugal há muitos estudos etnográficos que relevam o que há de exótico nos ciganos, em vez do problema político que há em nós". Está lançado o mote para uma posição que o antropólogo José Gabriel Pereira Bastos assume ser provocatória a de que apenas por via política se resolve o problema secular da discriminação dos portugueses ciganos.

Coordenador do Núcleo de Estudos Ciganos do Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas (CEMME), defende a definição de políticas de discriminação positiva. Um exemplo? Que seja consagrada uma quota de vagas em todos os níveis da Função Pública, à semelhança do que foi feito, na Índia, para "intocáveis" e "tribais". Ou criada uma fundação independente, destinada a incentivar "a integração não assimilati- va", como a Fundação Ghandi, na Hungria. Este foi um dos países que, a par da Alemanha, declarou formalmente os ciganos uma minoria étnica. "O que nos impede de fazer o mesmo? Só a falta de vontade política".

Ouvindo os grupos parlamentares, a abertura a essa proposta é, de facto, quase nula. Com argumentos que, curiosamente, se tocam em partidos tão distantes como o Bloco de Esquerda e o CDS-PP. "A discriminação positiva e etnicização são uma forma de colocar à parte, num gueto", considera João Teixeira Lopes, deputado bloquista. Argumento em que é secundado por Nuno Magalhães (CDS-PP) "O estatuto de minoria étnica poderá criar exclusão ainda maior".

Com ligeiras nuances, a reserva é expressa por PS e PSD. Pela voz de Celeste Correia, o primeiro afirma-se, ainda assim, aberto a propostas. "Para nós, está assumido que a comunidade cigana é a única minoria étnica do país, não sei se é necessária uma declaração formal", afirma. Já Pedro Duarte (PSD) garante, após expressar "dúvidas de que a discriminação positiva não possa resultar negativa", disponibilidade para "ouvir opiniões de quem trabalha no terreno e conhece a realidade". O JN não conseguiu ouvir o PCP.


Liberdade forçada


Contra o preconceito enraizado de que os ciganos são nómadas, o CEMME desenvolveu investigações que comprovam ter havido, ao longo da história, mecanismos de segregação e expulsão que os obrigaram a circular. Assim se viram forçados à venda ambulante, hoje atacada pelas autoridades, que José Pereira Bastos acusa de estarem a fazer a "decapitação económica" dos ciganos.

Nem tudo foi negativo nessa "liberdade forçada" que marcou o rumo de um povo, considera Olga Mariano, presidente da Associação de Mulheres e Crianças Ciganas Portuguesas. "Desenvolvemos um espírito de extrema solidariedade". E é dessa união que nasce a alegria cigana. Enquanto os não ciganos são "extremamente frios e centrados no futuro". Olga confessa que aprender a lidar com uma agenda foi "uma dor de cabeça". "Nós somos um povo que não programa e vive o presente".