21.7.07

Numa casa onde nasceram onze crianças, só há dinheiro para "o principal"

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Vivem em Fafe e ontem souberam que verão o seu abono de família passar de 326 para 447,2 euros. Não será muito, com tantas bocas para alimentar, mas "sempre é mais um bocadinho"


A mais nova nasceu com 23 semanas. A mãe até desmaiou ao vê-la. "Pesava 750 gramas, não tinha orelhinhas". Grande surpresa. Fátima nem sabia que estava grávida. Sofreu um acidente de moto e, de repente, o 11.º filho. Apanhou um susto. "Quase todas as crianças nascidas aos cinco meses e meio ficam deficientes". Com tantos filhos, como arranjaria vagar para uma criança com necessidades especiais? Mas não. Aos 15 meses, Jéssica "compreende tudo. Diz mamã, papá, papa, pipi. Os irmãos puxam muito".
Ao centro da mesa da pequena sala de jantar, há uma enorme imagem de Nossa Senhora de Fátima. Da mesa, avista-se uma cama atravancada numa divisão que já foi cozinha (ainda lá está uma pia). Jenine, longos cabelos louros, observa em silêncio as estranhas visitas. Verónica, a morena de cabelos encaracolados, tenta arrastá-la para a brincadeira. Puxa-a, ri-se, esconde-se debaixo da cama. As palavras da mãe dirigem-se para a que se fechou noutro quarto: "Carina, não te ponhas a armar! Desliga o computador!"

Às vezes, quer chamar um filho e saem-lhe dois ou três nomes. Como agora. Quer chamar Verónica e sai-lhe: "Andreia. Cláudia. Verónica". São muitos. Todos diferentes, todos iguais. Cátia, 18 anos; Diana, 16 anos; Carina, 14 anos; Cláudia, 11 anos; Andreia, 10 anos; Marco, nove anos, Gonçalo, oito anos, Jenine, cinco anos; Verónica, dois anos, Jéssica um ano.

Havia mais um nome nesta lista. Há sete meses, diagnosticaram leucemia a Nuno. Roda-viva com os tratamentos no Instituto Português de Oncologia, no Porto. Morreu há quatro meses. Tinha 15 anos. "Era o amor da minha vida", suspira a avó paterna. "Gostava de ajudar o pai". O pai, José Vieira, leva os rapazes para a oficina de mecânica, um de cada vez, para lhes ensinar a sua arte.

Uma creche em casa

Fátima deixou a fábrica ao terceiro filho. Roupa para lavar, dobrar, arrumar, limpezas, compras, comida, consultas. "Abri uma creche", brinca. Não planeava ter tantos. "Foi acontecendo. Também foi por querermos. Podíamos evitar". A avó pega em Jéssica, a risonha Verónica aproveita a vaga no colo materno. "Esta é do piorio. Se a deixar, está todo o dia a mexer na terra. Tira a roupa, sapatos, tudo".

O equilíbrio financeiro é uma acrobacia permanente no seio da família que mais abono recebe em Portugal - 326,5 euros. "Não dá para nada! Depois dizem que há falta de crianças, claro!" Esfuma-se tudo em fraldas, leite, papas... Com o aumento anunciado ontem, a família receberá 447,2 euros de abono, já que integra duas menores de três anos. "Sempre é mais um bocadinho".

No seu entender, "o Estado não tem culpa das pessoas terem tantos filhos, mas podia apoiar mais". Como um contributo para a renovação da população, não como uma esmola. Aufere 453 euros de Rendimento Social de Inserção. Evaporam-se em passes ("17,5 euros cada um"), almoço escolar ("mais 17,5 euros cada um"), material, dinheiro de bolso ("Pedem um euro, 50 cêntimos, mesmo as mais velhas não pedem mais, sabem que não há").

Um rapaz assoma à porta a mostrar os dentes: "Vai para a piscina, meu amor". Marco salta em direcção à piscina insuflável montada no quintal da habitação térrea. Passou para o 4.º ano. Têm "todos passado sempre", menos Diana, que chumbou duas vezes. Sentiu-se muito com as tragédias familiares. Agora, terá de conciliar estudos e trabalho.

Aos 38 anos, a matriarca atravessa uma crise: "Se fosse hoje, só tinha cinco ou seis". Ter muitos filhos "é bom, é uma grande alegria, mas é trabalhoso e... doloroso". Dói-lhe perceber que não os poderá ajudar a realizar sonhos que crescem dentro deles. Como o de Cátia, que acabou agora o 12.º ano e quer estudar Enfermagem. "Ela até disse: "Vou parar um ano, vou trabalhar"". Mas "era uma pena, nunca teve uma negativa". Está a tentar entrar na Força Aérea com o objectivo de lá prosseguir os estudos e (plano B) numa universidade pública.

O pai já faz tudo o que pode - tem dois empregos (trabalha numa oficina de mecânica durante o dia e na Cooperativa Agrícola de Fafe à noite). Fátima nem pode pensar em tornar a trabalhar fora. Apesar de "todos ajudarem", não tem mãos a medir. E o medo assombra-a. Jéssica passou três meses numa incubadora. Os pais cumpriam viagens diárias entre a casa, em Arões de São Romão, Fafe, e o Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães. E não está a salvo, nasceu com um tumor que obriga a apertada vigilância. É preciso cuidá-lo sem descurar as rotinas dos outros. O que vale é que a avó está sempre presente, incansável: "Cá vou olhando por eles". Quando ficou viúva, o filho e a nora vieram morar com ela. Tinham dois filhos. Arrumavam--se bem em três quartos. Agora, mesmo com o quarto exterior, é complicado. "Temos um terreno, a câmara disse que dava uma ajuda para fazer a casa, até hoje! Até já tenho vergonha de lá ir perguntar", torna Fátima.

Chegam cinco filhos de uma assentada. Carina, a "viciada na Internet", guarda-redes numa equipa de feminina de futsal, vem cá fora espreitar a algazarra alheia e torna a esconder-se. Os filhos do meio correm para o frigorífico e saem a trincar maçãs ou a beber sumo. "Procuram, não é preciso andar atrás deles. Se não encontram, dizem logo: "Não há comida nesta casa!"".

Os amigos metem-se com eles a cada gravidez ou nascimento. Diana até ralhava com a mãe: "Então? Não tens vergonha?" A rapariga sorri, embaraçada. "Muitos amigos são morgados [filhos únicos], têm tudo", atalha Cátia. E eles, os Vieira, só têm "o principal". Diana pode estar descansada. A mãe já se submeteu a uma laqueação de trompas. "Já tenho carga que chegue. Acho que já está bem assim", enfatiza o pai
A casa é uma animação. Verónica é a primeira a acordar. A partir das 5h00 ninguém dorme. Mete os dedos nos olhos dos irmãos; faz-lhes cócegas. Jéssica irrompe num choro. E é um fadário até a noite cair. À noite, "põem-se a ver um filme, adormecem, parecem uma ninhada".