28.9.07

Mulheres sobreviventes em busca de autonomia

Alexandra Marques, in Jornal de Notícias

Em Dezembro decidiu "Apanhar mais, não!"

Conceição 62 anos, reformada
Conceição nasceu no Brasil, onde deixou toda a família. Há 14 anos, em 1993, veio para Portugal, pátria do marido que aos 14 anos emigrou para o outro lado do Atlântico. Ele embarcou para Lisboa um ano antes, em 1992. Quando chegou, Conceição tinha 48 anos e já um rol de maus tratos do cônjuge, que começaram ainda no tempo de namoro.

Com 62 anos, está casada há 36 anos. Namorou com ele durante seis. A sua realidade é dura esteve durante 42 anos sujeita aos caprichos de um homem que, quando não lhe batia, espancava os objectos que tivesse à mão, como um bengaleiro que rachou à pancada.

Aguentou sem se queixar até ao dia em que levou a última tareia. Foi a 12 de Dezembro do ano passado, quando foi à UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta - denunciar o agressor e decidiu pedir o divórcio.

"Apanhar de novo, não", diz agora de cabeça levantada, mas com uma calma surpreendente.

Despeitado pela iniciativa da mulher, que até à data nunca o tinha afrontado, quando soube do pedido de divórcio exigiu que ela deixasse de usar o seu apelido. "É a primeira coisa que farei", respondeu-lhe.

Entretanto, já passaram nove meses e só agora vai correr a audiência decisiva.

Conta Conceição que o seu marido "sempre foi agressivo". "Desde o início. Batia-me, mas depois chorava, pedia-me perdão e dava-me presentes para eu o desculpar. Eu ia relevando porque o meu filho era pequeno", justifica.

Hoje o filho tem 34 anos, e tem sido um dos maiores apoios, juntamente com a nora, com os quais vive.

O marido (também com 62 anos ) deixou de lhe falar, assim como ao filho, mas manteve-se a morar na mesma casa, de onde só saiu há um mês e meio. Durante todos estes meses, Conceição teve de ver diariamente o homem que a maltratara. Comer à mesma mesa que ele. "Quando ele foi embora, senti-me muito aliviada, porque já não aguentava mais vê-lo", desabafa.

Foram duas vitórias, porque desde a denúncia que ele não voltou a agredi-la e até chegava a pedir-lhe autorização para mexer num objecto dela. "Uma coisa que ele nunca tinha feito!", exclama com a satisfação de, ao fim de tantos anos, ser por fim respeitada.

Conceição inscreveu-se e frequentou a formação da AMCV. Fez trabalhos de costura criativa, escutou histórias de mulheres de coragem que lutaram no passado pelos direitos que hoje existem, mas do que mais se orgulha é de ter aprendido Informática. Cerca de 90 horas em que aprendeu a navegar na Internet e a "falar" pelo Messenger. Ao vê-la tão entusiasmada com as novas tecnologias, este Verão ( e com parte do subsídio de férias) o filho fez-lhe uma surpresa comprou-lhe um computador para Conceição poder falar com as amigas que deixou no Brasil.

É também com um sorriso que relata como foram úteis as sessões de defesa pessoal. "Se eu soubesse, teria sabido defender-me ou pelo menos, tinha-lhe deixado uma marca", diz com uma voz doce e um ar matreiro.

Já reformada por doença, Conceição inscreveu-se, como voluntária, numa instituição e quer também ajudar outras mulheres que tenham passado por uma experiência similar. Como adora cozinhar, já pensou em ser monitora na AMCV de um curso de culinária ou doçaria - é que os doces brasileiros são o seu forte. "Eu antes aceitava tudo. A minha nora diziam-me 'Você tem reagir', mas não era capaz. Mas reagi e agora sinto-me outra. Por isso, lutem que vale a pena".

São mulheres de todas as faixas etárias, estratos sociais, etnias e religiões. Em comum têm o facto de viverem em Lisboa ou em concelhos limítrofes e serem sobreviventes de anos sucessivos de violência doméstica.

Chamam-lhes sobreviventes porque um dia, após décadas de agressões físicas e de actos de humilhação psicológica infligidos pelo homem com quem viviam, foram capazes de sair de casa ou de denunciar o agressor, junto de organizações civis, de entidades públicas ou das forças de segurança.

A partir desse dia deixaram de ser vítimas de maus tratos para serem heroínas anónimas, apesar do medo que continuam a sentir quando têm de andar sozinhas pela rua, ou quando frequentam locais onde o agressor sabe que as pode encontrar desprevenidas. Pode ser à saída do supermercado, do café do bairro, da escola dos filhos, do cabeleireiro.

Mesmo depois da separação, mantém-se o receio da vingança por parte do ex-companheiro que quase nunca aceita o acto de ruptura da mulher, por vezes, durante anos, subjugou.

Foi para essas mulheres que a Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV) criou, em 2006, o PROGRIDE - Programa para a Inclusão e Desenvolvimento - "Ser Mulher", financiado pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Dividida em três ateliês temáticos - Cidadania, Afirmação Individual e Autonomia -, a próxima acção inicia-se no dia 12 de Outubro e decorrerá ao longo de cinco meses.

Candidaturas abertas

As candidaturas estão abertas até ao final de Setembro (feitas através do e-mail acmvprogride @amcv.org.pt), mas apenas para jovens dos 16 aos 25 anos, residentes no concelho de Lisboa que estejam a libertar-se de situações de maus tratos conjugais.

Os ateliês - que se prolongam por um dia inteiro - decorrem numa sala do edifício, ao lado de uma outra onde os filhos das formandas são acompanhados por uma animadora cultural.

As formandas podem ainda, se quiserem, fazer o almoço na cozinha das instalações ou comer na marquise, preparada para o efeito.

No primeiro ateliê aborda-se a história do movimento das mulheres, os mecanismos da violência e da resolução de conflitos, os direitos e a aprendizagem de novas tecnologias.

No segundo, são trabalhadas as competências individuais através da voz, da expressão corporal e das técnicas de defesa pessoal. O terceiro ateliê inclui actividades de costura criativa, carpintaria e canalização, pintura de casa e electricidade.

O primeiro grupo - composto por dez formandas de uma faixa etária mais elevada - duas das quais contaram a sua história de vida ao JN (ler textos em baixo) frequentou a acção concluída em Fevereiro.

Só após a segunda formação se fará o balanço e equacionará eventuais alterações ao programa, para termos uma ideia mais exacta sobre as matérias que mais interessam às formandas, das várias idades", explicou ao JN, Mónica Albuquerque, a responsável da Associação das Mulheres Contra a Violência.

"Voltei a sentir gosto por aprender coisas novas"

Ana Cristina 55 anos, desempregada
Ana Cristina tem 55 anos e vive nos arredores de Lisboa. Com um filho do primeiro casamento, teve ainda duas filhas do homem com quem casou há mais de 20 anos e que a maltratava. Trabalhavam ambos no ramo da saúde e no mesmo local, onde ele constantemente a assediava e humilhava. Uma natureza agressiva que se acentuou com a passagem dos anos.

"Desde o início que ele dava sinais de agressividade, mas eu ia tentando ultrapassar, pensava que, com o tempo, ele mudaria o comportamento. Mas foi o contrário. Nos últimos três anos, agravou-se".

A cônjuge não era a única vítima. "Batia nas filhas, em animais e até em objectos".

Sendo o álcool um motor da violência, o seu efeito é muitas vezes usado como desculpa pelo agressor. Ana Cristina rejeita essa justificação "Não desculpo, embora houvesse esse factor, pois ele criou um círculo de amigos ligados ao álcool e ao jogo", diz.

Saiu de casa várias vezes, mas acabava sempre por regressar. Até que o ano passado, o filho faleceu. "Ele não me deu qualquer apoio, pelo contrário. Na pior altura da minha vida senti-me completamente desamparada e muito, muito deprimida".



Só no início deste ano, por não suportar mais tanto sofrimento em silêncio, pediu ajuda à Associação de Apoio à Vítima (APAV) e passou a integrar, na AMCV, os Grupos de Ajuda Mútua. "Apesar do estado em que eu estava, comecei a sentir um optimismo que não tinha", desabafa.



O passo decisivo foi dado quando se mudou para o apartamento da filha mais velha. Sem laços de amizade no casamento, as mulheres maltratadas (como ela foi) passaram a ser as suas amigas.



Mas ainda assim não se aventuram a jantar fora. "Almoçamos por vezes. Porque queremos chegar cedo a casa. Ainda temos um certo receio de ser agarradas por alguém..." Justifica o medo porque o marido continua a dizer que ela há-de voltar, como das outras vezes. Apesar de separados fisicamente, as ameaças também não pararam. Sabe que ela vive com a filha, faz-lhe chegar a sua ira quando telefona lá para casa.



Ana Cristina está mesmo convencida de que, em Portugal, deverão ser mais de um milhão as mulheres maltratadas pelos companheiros. Só que não se tem noção da dimensão, acredita, porque "elas não falam ou falam a muito custo".



Conta, a propósito, um episódio ocorrido há meses quando se cruzou na rua com uma senhora conhecida "Há muito tempo que não a vejo", disse--lhe. Ana Cristina respondeu que tinha "problemas familiares". "Ela começou a chorar e disse-me 'Eu também tenho, mas não digo a ninguém'".



Quanto à Ana Cristina, para além de ter saído de casa, teve de abandonar também o seu trabalho para não ter de conviver com o marido. Está desempregada, mas mantém a esperança de conseguir uma ocupação remunerada, nem que seja em tempo parcial.



Tendo o ensino superior incompleto, Ana foi uma das últimas formandas a integrar a turma. Mas foi uma das mais entusiastas.



"Tive conhecimento de direitos que nem sabia que tinha" e, acima de tudo, salienta cheia de alegria "Voltei a sentir o gosto de aprender coisas novas, como quando era miúda e andava na escola".



Muito expansiva, revela que gostaria de aprender fotografia. E faz questão de deixar uma mensagem às mulheres subjugadas "Arrisquem, porque serão capazes de tudo".