31.10.07

Dois milhões

José Luís Ramos Pinheiro, in Correio da Manhã

Cá dentro como lá fora, o desenvolvimento urbano atraiu muita gente à procura de outras condições e de melhores empregos.

Quando se fala de pobreza nacional, assiste-se a um encolher de ombros automático, como que aceitando o inevitável: sempre houve e sempre haverá. Aquilo que se tem como inevitável gera indiferença e é muitas vezes o que se passa quanto à pobreza.

Mas quando se fala em dois milhões de portugueses a viver na pobreza, qualquer pessoa pára para pensar. Como foi possível chegar até aqui? Como é possível que no século XXI dois milhões de pessoas vivam ao nosso lado com menos de 200 euros em cada mês?

Há uns anos, também havia pobres, mas talvez houvesse menos miséria. A estrutura de emprego era diferente. O mundo rural fornecia outro suporte às famílias em dificuldades. No passado, a economia rural, familiar e de vizinhança funcionava como rede atenuadora dos casos mais prementes, de fome declarada.

Com a procura de empregos nas cidades, muitas zonas rurais foram-se esvaziando. Cá dentro como lá fora, o desenvolvimento urbano atraiu muita gente à procura de outras condições e de melhores empregos. Mas há o reverso da medalha. Quem se desempregou na cidade deixou de ter o apoio mínimo (quase) garantido que a economia rural permitia. A fartura das cidades não consegue matar a fome dos seus mais pobres. Ironicamente, as grandes cidades também geram grandes isolamentos. Os sociólogos terão números, mas fica sempre a sensação de que nas cidades os pobres são quase sempre mais pobres. Também é verdade que a protecção social aumentou nas últimas gerações, mas o subsídio de desemprego, por exemplo, não é eterno.

E se há desempregados de longa duração, com formação escassa para a oferta de emprego, regista-se também o fenómeno inverso: desempregados com formação muito acima das necessidades. Nos últimos anos tornou-se frequente o desemprego entre profissionais qualificados que não encontram colocação ao nível das suas habilitações. De igual modo, muitos jovens licenciados não conseguem o emprego que a licenciatura prometia, quantas vezes pelo desencontro entre a oferta universitária e a oferta das empresas. Acresce que um jovem que nunca trabalhou não tem acesso ao subsídio de desemprego.

É pena que ao longo dos anos a sociedade tenha desvalorizado objectivamente as artes e os ofícios que poucos desejam como futuro. Por outro lado, há casos de trabalhos rejeitados por muitos desempregados, por serem considerados tarefas menores.

Por algumas destas razões e por muitas mais, Portugal, segundo os últimos indicadores, terá gerado este número impressionante de pessoas que sobrevivem na miséria. Os nossos dois milhões de pobres são um murro na consciência dos outros oito milhões de portugueses, os tais que há trinta anos surpreenderam com a aquisição em massa de televisões a cor e que têm espantado a Europa com a corrida aos telemóveis.

Para vencer a pobreza é necessário desenvolvimento, mas para desenvolver será indispensável articular pessoas, empresas, instituições e o Estado.

Aqui ao lado, os espanhóis montaram uma estratégia de desenvolvimento, aliando o Estado e a sociedade civil. Perguntem-lhes se não resultou.