31.10.07

Organização francesa acusada de tráfico de crianças para adopção

Clara Barata, in Jornal Público

A maioria dos meninos e meninas com idades entre os três e os cinco anos não eram órfãos, nem do Sudão; foram aliciados com doces a deixar as suas casas


A Arca de Zoe parece ser uma organização humanitária cujo empenho em ajudar na crise do Darfur atingiu proporções criminosas, ignorando a lei para levar crianças africanas para casais europeus desejosos de adoptar. Certo é que 16 europeus e dois chadianos que trabalhavam com a Arca de Zoe foram ontem acusadas pela justiça do Chade de tráfico de menores e fraude, ao tentarem transportar para fora do país 103 crianças.

"A maior parte das crianças são do Chade [e não do Sudão] e muito poucos serão órfãos", disse Pascale Andréani, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês. O ministro, Bernard Koucher, tornou claro que a operação da Arca de Zoe não coincidia com a sua visão de acção humanitária.

E o ministério do Quai D"Orsay anunciou que foi o Governo francês a informar o Chade sobre a Arca de Zoe, dias antes da detenção dos membros da organização, na quinta-feira, na cidade de Abéché, no Leste do país. "Fomos contactados por famílias que iam receber as crianças", explicou Andréani.

Annette Rehrl, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, criticou fortemente a associação. "Puseram ligaduras falsas nas crianças", para que parecessem mais frágeis. "Dizer que a Arca de Zoe é uma organização não governamental é um insulto para quem faz trabalho humanitário", disse, citada pelo jornal espanhol El Mundo.

Esta organização francesa queria salvar crianças do Darfur, no Ocidente do Sudão, que a guerra e a seca transformaram em zona de catástrofe humanitária. Queriam transferir para a Europa e para os Estados Unidos 10 mil crianças, das quais mil deveriam ficar em França. Pretendiam pedir o estatuto de refugiado para elas. E anunciaram a iniciativa em fóruns na Internet sobre adopção, dizendo que a adopção destas crianças era viável, diz o Libération.

Só que nem o Chade nem o Sudão permitem a adopção de crianças. Por isso, o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez-lhes alguns avisos. "Alertámo-los. Avisámos os nossos postos no estrangeiro. O que podíamos fazer mais? Não se podem tirar crianças de países como o Chade e o Sudão, que não autorizam a adopção", diz Rama Yade, secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e dos Direitos Humanos francesa.

Famílias pagavam

A Arca de Zoe diz que não pretendia dar as crianças para adopção. Mas Stéphanie Lefebvre, secretária-geral da organização, não foi muito clara, em declarações ao jornal Le Parisien: "Apenas queríamos salvá-las da morte, ficando com uma família de substituição". Tinham já 300 famílias para ficar com as crianças - e cada uma pagou de 2450 a 6000 euros.

A imagem da Arca de Zoe - que no Chade trabalhava sob outro nome, Children Rescue - não resulta positiva. E a acção destes franceses, espanhóis e belgas tornou-se também campo de batalha político: para o Chade, a França, e as relações entre Europa e África.

Em Espanha, o Governo diz que "não há provas" contra os sete espanhóis detidos - tripulantes do avião fretado à Girjet para transportar as crianças. "Continuamos a exigir a sua libertação", disse o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Bernardino León.

Mas a oposição socialista francesa quer explicações do Presidente Nicolas Sarkozy. "O Estado estava ao corrente desta operação, o Exército francês até emprestou helicópteros", acusou Aurélie Filippetti, porta-voz do PS, citada pela AFP.

Quanto ao Presidente do Chade, Idriss Deby Itno, reagiu usando os pa-
pões que os adultos mais temem quando se fala em crianças: "tráfico de crianças puro e simples", "pedofilia", "tráfico de órgãos".

Há receios de que este caso possa prejudicar a acção da Eufor, uma força europeia que procurará garantir a segurança no Darfur. Dentro de um mês devem começar a chegar à região fronteiriça do Chade e do Sudão 3000 militares.