20.10.07

Tratado de Lisboa consagra uma União Europeia diferente

Isabel Arriaga e Cunha, in Jornal Público

O Tratado de Lisboa vai favorecer a emergência de uma União Europeia (UE) diferente da actual, porventura mais democrática e eficaz, mas igualmente geradora de novos equilíbrios entre os Estados e entre as instituições comunitárias.

Ao contrário da maioria das anteriores reformas que procuravam equilibrar a posição relativa de estados e instituições, o novo Tratado desequilibra o conjunto em favor dos Estados mais populosos.

Esta alteração resultará, antes de mais, do reforço claro do Conselho de Ministros, a instituição onde estão representados os governos (e do Parlamento Europeu), em detrimento da Comissão Europeia, a instituição "supranacional" tradicionalmente vista pelos países mais pequenos como a melhor defensora do interesse europeu e, consequentemente, do seu. Este reforço resultará em grande parte da criação do novo cargo de presidente fixo do Conselho Europeu por mandatos de dois anos e meio, que vai substituir, a partir de 2009, as presidências semestrais rotativas entre todos os países. Desta forma, o melhor símbolo da igualdade entre os Estados desaparece da vida comunitária.

Oficialmente criado para garantir maior eficácia e coerência ao trabalho da UE, o novo cargo levanta um sério risco de rivalidade com a Comissão Europeia, da qual terá boas probabilidades de sair vencedor.

Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, reconheceu o problema de forma explícita numa entrevista no início de Outubro ao jornal belga De Standaard. "O novo Tratado tem grandes riscos", afirma. "Com o presidente do Conselho (...) poderá haver um novo circuito [de decisão] ao lado da Comissão e do Parlamento Europeu. Há um risco real de que os governos resolvam os seus problemas entre si de uma forma intergovernamental e sem ter em conta" as restantes instituições. Por isso, frisou, "vai ser preciso estarmos constantemente atentos para que as novidades [do tratado] não sejam mal utilizadas para diminuir o poder real das instituições".
Os seus receios parecem mais do que justificados à luz da posição britânica: Jacques Straw, um dos grandes aliados do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair - o "inventor" do cargo com o apoio de quase todos os grandes Estados -, relembrou em Setembro a importância que o seu país atribui ao cargo: "O Reino Unido foi sempre um grande defensor do presidente do Conselho Europeu para proteger os Estados-membros contra o poder da Comissão Europeia".

Os pequenos países temem, por outro lado, que os grandes escolham sistematicamente um dos "seus", dominando a instituição. Gordon Brown, primeiro-ministro britânico, voltou ontem a defender que Blair seria uma excelente escolha.

Mas os grandes países obtêm sobretudo um reforço importante do seu peso no sistema de decisões do Conselho de Ministros da UE por "dupla maioria" - 55 por cento de Estados representando 65 por cento da população. Este método acaba com o velho sistema de votos ponderados atribuídos a cada país consoante a sua dimensão, e que garantia a sobre-representação dos mais pequenos em nome do equilíbrio entre os princípios da igualdade entre os Estados e da representação democrática. Com a contabilização da população, este benefício desaparece.

O país mais populoso, a Alemanha, passará a pesar 16,75 por cento do total dos Vinte e Sete, o dobro dos 8,4 por cento que tem hoje com os votos ponderados. Malta, o mais pequeno, pesará apenas 0,08 por cento, contra 0,86 actualmente. Portugal passará de 3,47 por cento para 2,14 por cento.

Será sobretudo na formação de "minorias de bloqueio" das decisões (35,01 por cento da população com quatro Estados ou 13 países) que o novo peso dos grandes mais se fará sentir: os quatro países tidos como os "forretas" no plano orçamental - Alemanha, Reino Unido, Holanda e Suécia - poderão sempre bloquear qualquer decisão na matéria, o que não acontece com as regras actuais. Esta é uma má notícia para os países fortemente dependentes das transferências europeias, como Portugal. Ao invés, os mais pobres terão sempre de constituir coligações bem mais difíceis de treze países para poderem fazer o mesmo, o que é muito mais do que hoje.

É certo que o objectivo do exercício não é bloquear decisões, mas facilitá-las. Só que, quando os mesmos países estão sempre em situação de ganhar, tenderão a perder a motivação para negociar compromissos. A título de consolação para os mais pequenos, a "dupla maioria" só será plenamente aplicável a partir de 2017. Até lá, quem sabe se o sistema de decisão não terá sido alterado?