28.11.07

Abandono e solidão

Gomes Fernandes, Arquitecto, in Jornal de Notícias

As cidades de hoje escondem algumas situações de injusta relação de cidadania que são chocantes. Há uma nova pobreza urbana que, muitas vezes escondida, não disfarça esta crescente doença da cidade, tanto maior quanto mais envelhecida e debilitada esta se apresenta.

Porque estamos numa cidade marcada por estes sinais bem visíveis de envelhecimento patrimonial e debilidade socioeconómica, o problema das injustiças sociais e das fragilidades no exercício da cidadania deve ser motivo de atenção, pois, doutro modo, estaremos a "varrer para debaixo do tapete" da indiferença um assunto muito sério.

Aparente contradição, poderá dizer-se, quando os avanços tecnológicos e as facilidades de comunicação e acesso ao conhecimento deveriam contribuir para uma construção de vivência urbana mais justa e equilibrada; mas tal paradigma de avaliação não se verifica, constatando-se até um agravamento de sinais de exclusão e perda de auto-estima por parte de franjas de população que seria impensável ocorrer há algumas décadas atrás.

É a cidade que fica mais frágil e exposta a predações várias quando estes sintomas críticos se acentuam, e é também o seu futuro colectivo que está em causa quando a inversão do caminho se não verifica, pois a consciente independência de espírito e o estado de alma para o exercício da cidadania passa pelo equilíbrio de vida do cidadão, que só pode ocorrer acima de patamares de subsistência e segurança hoje em muitos casos postos em risco. O Porto é uma cidade envelhecida no seu património construtivo e habitacional, mas é-o também no seu potencial de resistência às doenças que a afligem, pois as maleitas do corpo atingem de tal modo o espírito e a alma cidadã que o futuro da cidade não lhes pode ficar indiferente.

Abandono e indiferença geram solidão e perda de auto-estima, e as crises sociais e económicas são fermentos contaminantes de quem se deixa, ou é arrastado, para este avesso da cidade, por vezes muito mais lúgubre e dramático do que o abandono a que estão votados muitos prédios em ruínas do corpo essencial da cidade. Em bastantes casos este avesso comporta outros em simultâneo com o pavio de vida que está prestes a extinguir-se no corpo arruinado dos velhos prédios. Fragilidades físicas profundas do património que arrastam e precipitam debilidades sociais e económicas dos cidadãos e das famílias, num somatório de velhices que se tornam preocupantes.

Cumpre ao Estado, ao Governo e às instituições públicas várias, incluindo autarquias, estarem atentos e ocorrer às situações, mas a doença compromete todos, daí a importância da denominada "sociedade civil", pelas redes de solidariedade social e apoio que podem organizar e em que cada um se pode comprometer.

Não se trata de fazer apelo ou lembrar valores caritativos, por respeitáveis que sejam para alguns, trata-se de apelar ao sentido solidário e de compromisso de uma cidadania marcada por valores de ética e responsabilidade, capazes de lembrar ao poder e aos seus representantes os deveres que assumem quando eleitos, mas de o fazer com elevado sentido de empenho próprio e de compromisso cívico. "Ser cidadão", como diria o saudoso Nuno Teixeira Neves, é um exercício permanente de atenção e responsabilidade, e ninguém pode ficar indiferente a tanto abandono e solidão que crescem todos os dias nesta que é a maior criação física do homem e uma das maiores do seu espírito - a cidade, como dizia mestre Fernando Távora.

A lembrar os mestres, todos nós aprendemos e a olhar os avessos da nossa cidade todos contribuiremos para melhor iluminar o seu futuro, que é também o nosso projecto colectivo.