25.11.07

"A polícia, as escolas, a comunidade, todos têm de se envolver na protecção das crianças"

Bárbara Wong (PÚBLICO) e Raquel Abecasis (Rádio Renascença), in Jornal Público

O Instituto de Apoio à Criança, pela voz da presidente executiva, a magistrada Dulce Rocha, propõe mudanças legislativas para salvaguardar direitos dos menores


Esteve à frente da presidência da Comissão Nacional de Protecção de Menores e Jovens em Risco na anterior legislatura. Actualmente presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança, Dulce Rocha mantém na ordem do dia reivindicações já antigas: mais formação para juízes, magistrados e técnicos que lidam com os direitos das crianças; valorização das carreiras dos que se dedicam ao assunto. Dulce Rocha contesta uma alteração ao Código Penal que retira "dignidade humana" às crianças abusadas e considera-a inconstitucional.

PÚBLICO/RR - Passaram cinco anos sobre a vinda a público do escândalo das crianças abusadas na Casa Pia. Três anos depois, o julgamento promete arrastar-se no tribunal, enquanto surgem novas suspeitas de abusos na instituição. Esperava que isto acontecesse?

DULCE ROCHA - A Casa Pia não está na mesma. Houve uma evolução no sentido de explicar às crianças os seus direitos; muitas reuniões com os professores; uma maior consciencialização sobre o que se pode fazer; uma vigilância mais apertada...
Mas há rumores de situações de abuso...

Será sempre importante estar vigilante e queremos sempre proteger cada vez mais as nossas crianças. Nunca são de mais os cuidados a ter em grandes instituições, mas houve esforço para reduzir o tamanho dos lares, uma aposta na formação do pessoal técnico - não estamos na mesma. Esse movimento gerou uma consciencialização nas outras instituições e um conjunto de medidas para evitar maus tratos, um fenómeno que estava bastante escondido. Houve também grande preocupação em transmitir a todas as famílias os perigos que existem.

Mas não a preocupa o julgamento estar ainda a decorrer e não haver perspectiva de que se resolva e, por outro lado, surgirem novas suspeitas numa instituição que devia estar muito vigiada?

Sem dúvida que é preocupante, e, realmente, isso deve ser um motivo para nos inquietarmos ao ponto de não fazermos apenas uma reflexão, porque são necessárias medidas muito específicas. É sempre um desafio a protecção das crianças. Talvez não tenham sido suficientes as medidas tomadas, mas não podemos culpabilizarmo-nos porque os criminosos têm mentes perversas e, às vezes, não conseguimos penetrar nessas mentes, por forma a evitar os abusos.

Como foi a sua experiência à frente da Comissão Nacional de Protecção de Menores e Jovens em Risco?

Foram dois anos muito intensos, que coincidiram com muitas situações dramáticas de mortes de crianças. A menina que foi morta pelo pai e pela avó e que apareceu no rio Douro, que, antes disso, vivia com uma madrinha... Na altura, fiz uma circular aconselhando as comissões a entender o alargamento do conceito de perigo na lei, por forma a que não fosse entendido que situações como esta mereciam um processo de regulação do poder paternal, porque não se devia regular o exercício de quem não o exerceu.

Foi também uma altura em que houve muitas críticas à comissão. Os técnicos queixavam-se de não ter formação nem apoio jurídico. O que mudou?

Há um avanço. O sistema tem fragilidades, mas mostra o desejo de envolver a comunidade na protecção das crianças. É um desafio muito grande não serem envolvidos só os tribunais e os técnicos. As comissões alargadas são constituídas por várias instituições e representantes de várias ciências. Pretende-se ainda que a comissão esteja próxima da população, tenha a participação da autarquia. O actual presidente nacional da comissão, Armando Leandro, diz que as crianças também têm direito à comunidade.

Houve mais formação?

Há um esforço de formação. No meu mandato, iniciaram-se alguns cursos, dos técnicos que estavam nas comissões, mas, actualmente, está-se na fase de formação de formadores. Mas não chega. A polícia, as escolas, a comunidade civil, os centros de saúde, todos têm de se envolver.

Mas o que é facto é que há casos que estão sinalizados, como o da menina de Viseu, que a educadora de infância avisou a comissão e, tanto quanto se percebe, nada foi feito. A criança morreu vítima de maus tratos infligidos pela mãe. Como é que isso acontece?

Há uma falha no diagnóstico que, por vezes, surge depois da vitimização da criança. No entanto, a formação, a troca de experiências, ajuda. Além disso, a lei também não favorece a situação. O que me parece é que não há sempre um responsável pela comissão e, na minha opinião, o presidente devia ser o representante da Segurança Social e o vice-presidente do município, que são duas das instituições mais envolvidas. O actual sistema é de rotatividade e de grandes mudanças, pois as pessoas não podem estar mais de dois mandatos, o que me leva a dizer que há ainda uma cultura de não considerar este um serviço prioritário. É importante valorizar este trabalho como trabalho social de grande qualidade e importante para as crianças.

Armando Leandro diz que, em Portugal, o direito das crianças é um direito menor e que é preciso que isto seja alterado. Concorda?

Penso que ainda é um direito menor. Para já, os direitos das crianças são muito recentes, a Convenção sobre os Direitos das Crianças fez 18 anos, e na Constituição da República Portuguesa o artigo que trata da protecção das crianças é o 69.º, ao passo que o que consagra as tarefas fundamentais do Estado é o 9.º, onde não estão contempladas as crianças vítimas de abuso e de maus tratos.

Essa é uma reclamação que fará numa futura revisão constitucional?

Sim, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, de que faço parte, propôs a introdução de uma alínea nova no artigo 9.º. Na altura, conseguimos introduzir uma alínea que consagra a promoção da igualdade entre homens e mulheres, mas não conseguimos o mesmo para a protecção das crianças.

No que diz respeito às crianças em risco, que efeitos poderão ter as alterações feitas ao Código Penal?

A alteração que diz que pode haver diminuição da culpa num crime continuado. Se a infracção for praticada várias vezes, [a lei] vem dizer que pode atenuar-se a pena caso haja violação reiterada, desde que se trate da mesma vítima. Isto é absolutamente inadmissível. Sobretudo relativamente aos casos de abuso sexual de crianças, esta possibilidade está consagrada e é indigna.

Concorda com a tese de que essa alteração foi feita à medida do caso Casa Pia?

Eu não quero crer que seja assim. Acho que é inconstitucional e não deve ser aplicada em crimes desta natureza. Não é concebível que uma criança de cinco anos que é violada, à quinta, à sétima, à décima vez, não seja tratada como pessoa. A determinada altura, deixa de ter dignidade humana e a dignidade da pessoa humana é inerente à nossa República. É uma desvalorização da vítima, e particularmente da criança enquanto vítima. E isso é inconstitucional.

IAC defende afecto em detrimento da biologia

É por causa do caso Esmeralda, a menina que vai ser entregue ao pai biológico, que o Instituto de Apoio à Criança (IAC) vai propor uma alteração à lei que preveja "o direito das crianças às relações de afecto profundas"?

O IAC pediu uma audiência ao procurador-geral [depois de amanhã], para apresentar a nossa preocupação, que não é só com essa menina, mas com todos os casos que têm na génese o conflito de alguém que cuidou da criança desde o nascimento e o facto de os pais terem ido buscar a criança. Temos visto casos trágicos. O que se verifica é que a criança não corresponde às expectativas dos pais, porque fica doente ou tem comportamentos disruptivos, a criança sofre tanto na sua estabilidade emocional que os pais não conseguem lidar com a situação.

Porque não têm preparação?

Pois. O que é certo é que, nesse documento, vamos defender que o superior interesse da criança deve ser clarificado legalmente. Parece-nos importante que o direito à preservação de relações afectivas profundas fique na lei.

Mas quando a lei diz que se deve "atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem", esse princípio não está já consagrado?

Claro que podemos considerar que já resulta da lei, mas não está expresso. O documento do IAC ainda está em preparação, mas tem três ideias fortes: o superior interesse da criança, o direito às relações afectivas, o direito da criança a ser ouvida.

Que leitura faz do caso Esmeralda?

Como magistrada, gostava de me pronunciar em termos gerais. Evidentemente que não se pode ignorar este caso, mas o que move o IAC são todas as crianças.

"Quando se decide pela institucionalização, não se deve voltar atrás"

Tem-se manifestado pela existência de mais formação para os magistrados. Já existe?

Ainda não há formação. Tem havido um esforço para fazer cursos de qualificação e pós-graduação, mas, mesmo na formação inicial, não existe a cadeira de Direitos das Crianças. Penso que será inevitável chegarmos à conclusão de que temos de chegar à democracia cognitiva. Não temos o direito de decidir sem a qualidade exigível, que resulta dos conhecimentos científicos actuais.

Mas se continua a não haver formação...

Mas vai chegar o tempo em que vai haver! E há formação, o que se entende é que é necessário mais.

No que diz respeito à lei da adopção, a jurisprudência tem como valor quase absoluto o direito dos pais biológicos, não é assim?

Pois, e os pais não são donos das crianças... O que acontece é que há duas interpretações. Por isso digo que é preciso clarificar a lei, para que não haja tantas dúvidas. A responsabilidade é também de quem legisla. Temos deputados e Governo com poder legislativo e a lei deve ser mais clara do que era no século XX.
O caminho da adopção ainda é penoso?

Há um tempo útil para a adopção e vemos que ainda há dificuldade em decidir de acordo com esses princípios importantes que são o do tempo útil para a criança. Um ano na vida de uma criança é muito tempo.

O que é facto é que ainda há muitas crianças institucionalizadas. O Governo diz que são mais de 12.400 e que o objectivo é reduzir esse número em 25 por cento. O que é preciso fazer?

É necessário pensar que a institucionalização por tempo prolongado não deve ser a solução, só quando as outras falham. Também é importante que cada criança tenha um processo individual, porque pode haver casos de entrega a família de acolhimento...

... Ou aos pais biológicos?

Quando se decide pela institucionalização, já não se deve voltar atrás. Os bebés não devem ficar com famílias de acolhimento, porque criam-se laços fortíssimos e depois há ruptura. Uma criança de tenra idade deve ir para um centro de acolhimento e privilegiar-se a adopção. A família de acolhimento deve ser alternativa à institucionalização prolongada [para crianças mais velhas]. É muito útil reflectir acerca da lei de protecção de crianças e jovens e na introdução de uma alínea que favoreça decisões mais de acordo com a realidade.

12.400
É o número de crianças institucionalizadas que é apontado pelo Governo. O objectivo é reduzir esse número em 25%