25.11.07

Vidas cruzadas no quotidiano "sombrio" da Ribeira do Porto

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Os passos de Fernanda, Laurinda e Arminda num cenário degradado de casas com janelas entaipadas ou vidros partidos


As escadas de madeira rangem a cada passo. A partir do primeiro andar não há iluminação. Fernanda mora lá em cima, no quinto. O quinto é um labirinto com um rádio ligado numa ponta e outro ligado noutra. Aquele zunzum é vida que se injecta no apartamento atravancado. Está sozinha há oito anos, desde que a irmã foi internada num lar.

Laurinda está sozinha desde sempre. Enquanto trabalhou não se doeu. Agora, tenta nem se lembrar desse pormenor. Lê "um bocado, alguma coisa bem-disposta". Conversa com os livros. "Sabe o Meu Pé de Laranja Lima [de José Mauro de Vasconcelos]? É sobre um menino sozinho que tinha uma árvore por companhia. Eu tenho um livro de vez em quando."

Arminda começou a morar sozinha depois da morte da filha "aleijadinha". "Era a minha companhia. Tenho outros quatro filhos, mas agora ninguém quer os pais em casa", queixa-se. Uma delas ainda tentou, só que o marido "era um ciumento". Arminda morou lá um mês e tornou à sua degradada casa. A filha disse-lhe que "tinha de ser". E depois ela morou sozinha uns 20 anos. Há perto de três, entrou num lar. Não teve escolha. Está com 87 anos, a casa aluiu.

As três idosas cruzam-se na Associação Social e Cultural de São Nicolau, no centro histórico do Porto. Fernanda raramente põe ali os pés, usa a modalidade centro de convívio - aparece quando lhe acabam as compras ou quando lhe apetece ver a irmã e como as pernas estão perras apetece-lhe cada vez menos. Laurinda usa a modalidade centro de dia. E Arminda a modalidade lar.

Este não é o centro histórico da mocidade delas. "É muito sombrio." Abundam edifícios com as janelas entaipadas ou com os vidros partidos. Entre 1981 e 2001, a população passou de 27.961 para 13.189. Foram-se os jovens, ficaram, sobretudo, os desempregados, os beneficiários de rendimento social de inserção e os velhos como elas. No Largo de São João Novo, "ao domingo, não se ouve nada". "Os que têm filhos vão passar o fim-de-semana a casa deles" e Laurinda amargura-se ao vê-los. Há quem prefira não ir. Arminda deixou de ir desde que passou a usar um saco para urinar e defecar. Tem vergonha.

Laurinda mora sozinha num prédio de três andares. Primeiro morreu a vizinha do 2º andar, depois a do 1º. No prédio à direita não mora ninguém, no prédio à esquerda mora um casal. Aterroriza-a a ideia de gritar no vazio. "Peço a Deus que me mate de dia. Se morro de noite, ninguém dá comigo." Entregou uma cópia da chave à vizinha da frente: "Se não levantar a persiana, ela vai lá bater à porta."

Fernanda teme ouvir a porta de noite. Não há muito bateram por volta das 22h00. Chiuuuuuu. Fernanda ficou quieta, quietinha. De repente, "zás, trás". A costureira respirou fundo, encheu-se de coragem, perguntou: "Quem é que está a entroncar a minha porta? Vou já telefonar à polícia!" Quem lá foi desapareceu. E lá foram cem euros para uma fechadura nova.

O orçamento não estica. Calças de fato-de-treino por baixo do vestido, avental por cima da camisola, Fernanda enverga um xaile e um par de mangas extra a que chama "manguitos". Não há aquecimento na casa que a acolhe há 60 anos. Aos 76, ainda esforça a vista para costurar. Tem de se entreter. Hoje nem sequer saiu de casa. "Tendo as coisinhas [para cozinhar] em casa não saio." Não fosse a associação faltaria comida.

A associação disponibiliza apoio domiciliário, centro de convívio, centro de dia, lar. O facto de se destinar, preferencialmente, aos idosos da freguesia reduz o impacte da institucionalização, salienta a directora, Susana Vasconcelos. Muitos dos que ali estão conhecem-se do café, da mercearia, do dia-a-dia. Se quiserem sair, sabem onde é a igreja, o café, a farmácia. Quando alguém vem visitar um, sempre cumprimenta outros que o viram crescer. No tempo em que a Ribeira do Porto era uma azáfama de dia e de noite.