17.12.07

A ceia que alimenta o corpo e diminui a solidão

Maria José Santana, in Jornal de Público

É certamente uma das noites mais frias do Outono. Julieta e Mário servem-se da bebida quente que acabam de receber das mãos da equipa de voluntários das Florinhas do Vouga para contrariar os efeitos da temperatura, que ronda os zero graus. Não vivem na rua, mas é como se vivessem: sem família, com empregos precários e a fazer contas ao dinheiro que nem sempre chega para comer.

Recorrem à preciosa ajuda disponibilizada pela instituição diocesana de Aveiro, tanto na Cozinha Social como no programa de rua que acaba de ser criado com a designação, ainda informal, Ceia com Calor. Muitas vezes, confessa Julieta, estas são as únicas refeições do dia. Ainda assim, o verdadeiro efeito da fatia de bolo e do chá quente que obteve junto da carrinha estacionada na zona do Rossio vai muito além da satisfação da necessidade de alimentos. "Eles são uma família", garante.

"Eles" são os voluntários que diariamente distribuem as refeições na rua, cidadãos que não hesitam em abdicar do conforto do lar, uma noite por semana, para distribuir comida a quem vive ou depende da rua. Como o Luís, um ex-engenheiro alimentar holandês, que há cerca de quatro anos se instalou em Portugal. A mudança não conseguiu atenuar a sua ligação ao voluntariado, que desenvolveu ao longo de 27 anos, na Holanda. Muito pelo contrário. Há quatro anos a prestar serviço no Banco Alimentar Contra a Fome, este antigo engenheiro associa-se, agora, à causa dos sem-abrigo. Cumpriu a sua primeira experiência de distribuição de refeições precisamente na noite em que o PÚBLICO acompanhou a equipa de rua das Florinhas do Vouga, na passada quinta-feira.

As equipas de voluntários vão rodando entre si, mas o ritual é sempre o mesmo. Pelas 21h00, a carrinha da instituição transporta-os até à pastelaria da cidade responsável por ceder o pão e os bolos para a ceia dessa noite - os estabelecimentos aveirenses acederam de imediato em colaborar com a iniciativa. Segue-se a viagem até à Casa de Santa Zita, instituição que se ofereceu para preparar o chá, café e leite quente que completam a ceia a distribuir nas ruas.

A primeira paragem é no parque de estacionamento do Rossio, onde se concentram vários arrumadores de carros e prostitutas, entre os quais há vários sem-abrigo. E é aqui que os voluntários permanecem cerca de uma hora, servindo e conversando com aqueles que vêm até junto da carrinha ou que são chamados para tal. O roteiro da noite, na qual é servida uma média de duas dezenas de refeições, inclui ainda uma passagem pela estação da CP, outros dos locais frequentados por gente sem tecto.
"Ultimamente, não temos encontrado lá ninguém", diz Fátima Mendes, directora-geral da instituição. Na quinta-feira, confirmou-se a tendência dos últimos dias. A directora, voluntária, e nessa noite também condutora da carrinha das Florinhas do Vouga, decide fazer um pequeno desvio ao percurso habitual. "Vamos só passar na zona da Forca-Vouga, porque nos têm dito que aparecem cobertores numa paragem de autocarros e junto à Loja do Cidadão", explica. A rota termina com nova passagem pelo Rossio, onde a equipa costuma permanecer até cerca das 23h30. A rotina é recente, conta com pouco mais de uma semana, mas, segundo o padre João Gonçalves, está para durar. "Não vai ser só durante o Natal e Inverno. Queremos que seja para o ano todo", vinca.