26.12.07

Repressão da imigração ajuda redes criminosas, diz Guterres

Adelino Gomes, in Jornal Público

Auditório 2 da Gulbenkian esgotou para ouvir o alto-comissário da ONU para os refugiados falar sobre "o século dos povos em movimento"

O conceito de refugiado deve ser objecto de uma nova definição, que vá além da guerra e dos conflitos, defende Guterres


a Um olhar sobre os mais recentes acontecimentos relacionados com os dramas das migrações - "seja no Golfo Pérsico, no Mediterrâneo, nas Caraíbas, em frente das Canárias, ou há dias no Algarve" - mostra que se está a permitir o desenvolvimento progressivo de "um conjunto de multinacionais do crime à escala global". Estas dispõem de uma "enorme capacidade corruptora nas administrações e usam tecnologias muito sofisticadas", avisou o alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres, no encerramento do Fórum Gulbenkian de Saúde, quinta-feira, em Lisboa.

Como aconteceu com a instauração da Lei Seca, nos anos 20 do século passado, nos Estados Unidos, a repressão das migrações "irregulares" (palavra que Guterres prefere a "ilegais") favorece a constituição de "grandes redes criminosas, com enorme poder, e que não têm sido combatidas".

António Guterres confessou que, "sem pretender ser cínico", dá por si a pensar, muitas vezes, que as populações só não reagem "porque pensam que os seus filhos podem um dia ser vítimas da droga e não pensam, seguramente, que os seus filhos podem um dia ser vítimas de tráfico de pessoas humanas". Se houvesse no combate ao tráfico humano a mesma determinação que no combate à droga, "ter-se-ia progredido, apesar de tudo, um pouco mais", acrescentou.

O antigo primeiro-ministro português falou durante cerca de três quartos de hora, apenas com algumas notas à frente, perante um auditório que esgotou o Anfiteatro 2 da Fundação Calouste Gulbenkian.

Debate mal informado

O problema das pressões migratórias tem sido objecto de um debate internacional "ao mesmo tempo populista e mal informado", e que tende a "travar politicamente esses movimentos populacionais", notou António Guterres.

Muitos ignoram a existência do mercado global de trabalho ("pode-se tentar regular ou mesmo condicionar os mercados, mas tentar inverter a sua marcha normalmente dá maus resultados"); que os movimentos populacionais ocorrem tanto nas sociedades desenvolvidas como ao nível do mundo em desenvolvimento; e, por fim, não prestam atenção ao sentido negativo da demografia na Europa. Se perguntarmos a um europeu médio se quer ter mais filhos, se quer trabalhar no restaurante ao lado, e se quer imigrantes no país, a resposta será "não" a todas elas, "o que fornece uma solução impossível para o futuro da Europa", sustentou.

Um dos grandes desafios que se põem hoje à União Europeia (UE) é o de ser capaz de encontrar mecanismos que permitam, no exercício soberano, pelos Estados, das suas políticas de segurança e de imigração, detectar os que precisam de protecção internacional, disse o responsável do ACNUR. Isto implica colocar no centro do debate internacional a criação de "um novo consenso mobilizador em torno do conceito de responsabilidade de proteger", que permita à comunidade internacional "exercer essa responsabilidade quando os Estados não queiram ou não possam fazê-lo".

Os novos refugiados

O alto-comissário considerou "indispensável" a coordenação de políticas sobre o fenómeno migratório "entre os países de destino, de trânsito e de origem" e defendeu que se estabeleça com clareza uma nova definição do que é ser refugiado. Há cada vez mais pessoas que não correspondem à definição tradicional de refugiado enquanto vítima de guerra, conflito, perseguição.

A par da guerra e dos conflitos, outros factores se conjugam para obrigar as pessoas a abandonarem a sua casa ou o seu país, como "a pobreza extrema e a degradação ambiental por alterações climáticas". A comunidade internacional, porém, "tem pouca capacidade para gerir e dar respostas que garantam efectivamente a protecção dos direitos das pessoas".

Uma vez que não parece possível "controlar ou conter" o fenómeno das migrações, "de que a maior parte dos países de destino, aliás, necessitam para a sua sobrevivência", torna-se necessário encontrar a síntese entre o que é a necessidade de respeitar a identidade dos que chegam e um consenso sobre a vida em comum nessas sociedades. Não haverá solução para este problema global, porém, se ele for discutido numa lógica de irracionalidade. "Quer queiramos quer não, o século XXI será o século do povo em movimento. Quer queiramos quer não, as nossas sociedades serão cada vez mais multiétnicas, multi-religiosas e multiculturais. E é fundamental que as pessoas sejam capazes de viverem em comum, de se respeitarem e apreciarem na sua diversidade", concluiu.

O envelhecimento será o tema do próximo Fórum Gulbenkian sobre Saúde, anunciou o presidente da Fundação Gulbenkian, Rui Vilar. O comissário da iniciativa, que se realiza anualmente desde 1998, será João Lobo Antunes, que lhe pôs "o poético nome" de O Tempo da Vida.