12.1.08

A Ribeira foi tomada de assalto

Alfedo Teixeira, Francismo Mangas e Joana de Belém, in Diário de Notícias

Morte, rivalidade entre gangues. De repente, a Ribeira dos barcos rabelos, bares e restaurantes, do Infante D. Henrique e da Ribeira Negra, salta para a actualidade pelas piores razões. Ilídio Correia, da vizinha Miragaia é assassinado e um grupo de jovens é detido. É nesta parte antiga do Porto que têm o seu ponto de encontro, na sede do clube o Ribeirense. Alguns, poucos, ainda vivem juntos, outros seguiram a tendência da desertificação, procuram paragens diferentes para morar. Mas é à Ribeira que regressam sempre.

Com os quatro membros do gangue da Ribeira detidos, a luta processual só agora começou. Fátima Castro, advogada de Sandro Onofre e Paulo Aleixo, que aguardam julgamento com Termo de Identidade e Residência, está a estudar a possibilidade de processar o Estado Português pela acusação de terrorismo.

A Ribeira e o Porto já tiveram melhor imagem. Quando o naturalista alemão Heinrich Friedrich Link passou por aqui, em 1798, disse que estava perante a "cidade mais limpa do País". E "muito segura, precisamente ao contrário de Lisboa". Na obra Notas de Uma Viagem a Portugal e Através de França e Espanha, Link, além da admiração por ver magnólias nos jardins, conta que "os roubos e os homicídios motivados por roubos eram coisas muitíssimo raras". Exemplos de facadas por ciúmes, contudo, "não faltavam".Se o naturalista voltasse ao Porto, duzentos anos após a primeira estadia, as suas notas de viagem sobre a cidade, por certo, seriam menos solares. Da Ribeira, e do seu povo, o ilustre viajante centrou a atenção num certo declínio do porto da cidade, em parte, devido a corsários franceses que acharam refúgio em Vigo, na vizinha Galiza - e "vagueavam quase sempre em bandos à vista do Porto".

Os corsários, enfim, perderam-se na memória. A Ribeira, essa, recupera um rosto violento. Jardim Moreira, padre de S. Nicolau, não se pronuncia sobre o alegado gangue, porque esse assunto, diz, não é da sua competência. "Será injusto da minha parte apontar o dedo." Padre Jardim tem, no entanto, uma explicação para insegurança e violência com raízes na sua paróquia. "Essa gente é vítima, enveredou por aí porque é vítima, não lhe deram atenção a seu tempo" e procuraram alternativas. "Das autoridades, quem tiver as mãos limpas que atira a primeira pedra".. Para o pároco, pobreza é um sinónimo de injustiça. "Os pobres são uns injustiçados: e podem ser eles culpados da injustiça dos responsáveis? Não, não podem ser". Jardim , que esta semana fez o funeral a duas mulheres de S. Nicolau vítimas de over dose, afirma que é preciso "desmarcar a gente que vive nos palácios e faz tudo o que lhes apetece". Não seriam precisos "tantos milhões", assegura o pároco e também presidente da Rede Europeia Anti-pobreza em Portugal, para resolver o problema da habitação no centro histórico

Por detrás de uma paisagem única, património mundial, uma longa história de miséria e sofrimento. A turística Ribeira, da movida, dos bares e restaurantes, do Hotel Pestana, debruçado no rio, dos barcos de cruzeiro a subir o Douro, ainda não sacudiu em pleno a fuligem, as marcas, de outrora. O tempo, não muito distante, de na mesma casa sobreviverem centenas de pessoas - os chamados "paquetes da Rosa Padeira", na Rua da Fonte Taurina -, com divisões de serapilheira, e uma só sanita para todos, é verdade, faz parte da memória. Ao passado pertence a penúria extrema das crianças que dilacerou o coração do padre Américo, o fundador da Casa do Gaiato, nas suas visitas ao inferno do Barredo. "Tal era a pobreza que as pessoas alugavam garfos e colheres para comer", conta Maria Helena, há 25 anos na cozinha do restaurante A Grade.

"As pessoas tinham para cima de cinco filhos cada", relembra Miguel Gonçalves, 57 anos. Só a sua avó paterna contribuiu para a demografia com 21 filhos, e não era caso único: "Morava muita gente, num simples quarto podiam viver sete ou oito, casas de três e quatro andares com duas casas de banho."

"Ui! Havia tanta gente! Na parte de trás, no Barredo, vivia mais gente do que devia." Maria Sousa tem bem viva a memória dos quartos alugados pela Elisa do Ceguinho e também pela Rosa Padeira, a dona do prédio onde até "num vão de escada vivia uma família". Tempos difíceis, que os mais antigos no entanto olham com saudade. A Ribeira formava "uma família", ouviu o DN da boca de muitos dos que ainda a habitam. "Agora não existe fome nem pobreza, está melhor, mas mais valia a pobreza antiga do que a riqueza de hoje, auxiliávamo-nos uns....