14.2.08

Declaração da Conferência das Comissões Europeias Justiça e Paz

in Agência Ecclesia

Justiça e não migalhas

«Como temos que alterar o comércio mundial se queremos levar a sério a redução da pobreza»


Apesar de décadas de programas de desenvolvimento, a extensão da pobreza mundial apenas decresceu de forma reduzida. Mais de 1 bilião de pessoas vivem ainda em pobreza extrema, isto é, têm que viver com menos de um dólar por dia. Os mais afectados situam-se no Sul da Ásia e na África Subsahariana, onde a pobreza estagnou em níveis elevados ou mesmo aumentou.

Existe um vasto leque de causas e consequências da pobreza extrema. Pobreza significa que a satisfação das necessidades humanas fundamentais não está ou está insuficientemente assegurada. As pessoas afectadas sofrem de fome, má nutrição e doenças, vivem em bairros que são absolutamente inadequados, estão desempregadas ou são mal pagas. Mas a pobreza não é apenas caracterizada pela falta de rendimentos. Desde que a Encíclica Populorum Progressio (PP) foi publicada, em 1967, a Doutrina Social da Igreja tem enfatizado que a pobreza está muitas vezes relacionada com a exclusão social, o acesso insuficiente a serviços sociais básicos (cuidados médicos, educação), a falta de liberdade cultural e de segurança legal, bem como a não existência de oportunidades para a participação política. Assim, as metas de desenvolvimento nunca devem ser limitadas ao crescimento económico, independentemente de quão indispensável e fundamental seja o crescimento. “Para ser autêntico, o desenvolvimento deve ser integral” (PP, n. 14) e deve incluir o progresso económico, político, social e cultural do homem e da humanidade como um todo. Isto é, nada mais, nada menos, que a nossa própria imagem como parte da família humana. As nossas vidas estão estreitamente interrelacionadas. É uma questão de dignidade humana, todos aceitarmos condições que respeitem o facto de que o ser humano é criado à imagem de Deus. Esta não é uma questão técnica ou sócio-técnica. É essencialmente uma questão de cultura humana.

1.Objectivos de Desenvolvimento do Milénio – Um conceito amplo do desenvolvimento

Este conceito amplo de desenvolvimento inspirou os objectivos de desenvolvimento do milénio (ODM), expressamente adoptados na Declaração do Milénio das Nações Unidas e aprovados pela Assembleia-geral das Nações Unidas, no Outono de 2001. O primeiro objectivo fundamental a que os países se comprometeram foi reduzir a pobreza mundial e a fome para metade até 2015 (relativamente a 1990).

Os ODM estabelecem um quadro comum para as políticas internacionais de desenvolvimento e um conjunto de oito objectivos mensuráveis (isto é, verificáveis). Além da eliminação da extrema pobreza e da fome, tais objectivos visam melhorar o acesso à educação e aos cuidados médicos, promover a igualdade de género, assegurar a sustentabilidade ecológica e construir uma rede de parceria mundial para o desenvolvimento.

Agora, decorrida quase metade do prazo previsto, a avaliação de médio prazo é modesta. Nalgumas regiões existe um progresso encorajador, no que respeita a alguns objectivos, enquanto que noutras regiões dificilmente se vê qualquer progresso ou se deram mesmo passos para trás. No conjunto, teme-se que os objectivos globalmente definidos possam falhar redondamente, e mesmo na Ásia, a região com maior crescimento, não há indicação segura de que todos os objectivos sejam alcançados. Quais as razões para isto?

2.Desenvolvimento interno como base para a redução da pobreza – Envolver os pobres nas iniciativas de desenvolvimento

Mais uma vez há a questão de saber como encontrar as estratégias apropriadas para uma luta efectiva contra a pobreza. As últimas décadas de políticas de desenvolvimento mostraram que a redução eficiente da pobreza é impossível sem que seja apoiada por um processo de desenvolvimento interno, em conjunto com a boa governança e o crescimento efectivo, com impacto sobre o emprego. A primeira base para o desenvolvimento deve ser conduzida pelos próprios países. Deste modo, cada governo e cada sociedade têm a responsabilidade primária pela redução da pobreza, tal como foi já dito na Populorum Progressio (PP, n. 77). A condição de que as pessoas visadas devem sempre ser o ponto de partida, actores e destinatários de todo o desenvolvimento, é tanto um requisito ético, que deriva directamente da dignidade humana, como um pré-requisito básico do desenvolvimento sustentável. Assim sendo, as estratégias de desenvolvimento devem sempre partir das necessidades reais dos pobres e promover a sua auto-ajuda potencial, no sentido do “desenvolvimento a partir da base”. O facto de Mohammed Yunus, o fundador do Banco Grameen, ter recebido o Prémio Nobel da Paz, é um sinal encorajador nesta direcção. Contudo, deve ser dito que os pobres não estão ainda suficientemente envolvidos na redução da pobreza.

3. A responsabilidade dos países ricos por uma ordem económica mundial centrada no desenvolvimento – Distinguindo entre falar por falar e mudar

Embora as contribuições dos países pobres para reduzirem a pobreza sejam indispensáveis, seria ingénuo e irresponsável colocar o fardo da responsabilidade apenas sobre os seus ombros. O desenvolvimento de um país deve ser também visto no contexto dos vários envolvimentos e dependências internacionais. Isto é cada vez mais verdade no contexto da globalização e reflecte-se também no oitavo objectivo de desenvolvimento do milénio, que incide sobre o estabelecimento de uma parceria global para o desenvolvimento. Tal significa que os países ricos são chamados a assumir responsabilidades e que são especialmente interpelados a actuar no sentido da redução da pobreza mundial.

3.1 Transferências

O que ocupa o centro da atenção pública é, sobretudo, o compromisso das nações industrializadas de aumentar a ajuda ao desenvolvimento. Trata-se certamente de um passo útil e importante. Mas, de acordo com o princípio do “desenvolvimento a partir da base”, esta ajuda financeira só pode ser de natureza suplementar. Simultaneamente, devem ser tomadas medidas no sentido de assegurar que estes fundos estejam a ser efectivamente empregues na redução da pobreza. A ajuda ao desenvolvimento não é somente uma questão de quantidade mas, também, de qualidade. A cooperação para o desenvolvimento e a ajuda ao desenvolvimento devem auxiliar os países pobres a estabelecer as infra-estruturas apropriadas para ultrapassar a má nutrição, a iliteracia, os problemas de saúde e a exclusão social. O acesso a meios que vão ao encontro das necessidades específicas dos pobres, isto é, cuidados médicos, educação, apoio jurídico, participação política e serviços de micro-finanças (poupança, seguros, créditos), é a base para criar condições de vida decentes e, ao mesmo tempo, constitui um pré-requisito para iniciar um processo de desenvolvimento auto-sustentado, com o maior impacto possível sobre o emprego. O desenvolvimento só pode ser prosseguido com e pelas próprias pessoas, se as políticas económicas e sociais se completarem mutuamente.

3.2 Mudança estrutural

A possibilidade de uma política amiga do desenvolvimento, a nível nacional, é fortemente limitada a nível global, devido especialmente às dependências económicas actuais. As estruturas do comércio mundial e as iniciativas de instituições relevantes, tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) são essencialmente controladas pelas nações industrializadas e pelos seus governos. Na medida em que estes governos são democraticamente eleitos, as pessoas dos países ricos são co-responsáveis pela estrutura das condições económicas mundiais. O princípio da subsidiariedade é o princípio ético guia para o estabelecimento deste quadro de condições. Compreende o direito à participação, bem como o dever de ajudar as pessoas a ajudarem-se a si próprias. Estes aspectos constituem o padrão através do qual as competências são institucionalmente ordenadas e atribuídas.

Uma ordem económica mundial deve oferecer aos países pobres o quadro necessário para um desenvolvimento independente e, ao mesmo tempo, criar instrumentos para os apoiar, tais como regras previsíveis sobre o comércio mundial, que vão ao encontro das necessidades dos países menos desenvolvidos. Isto envolve também a cooperação técnica e financeira com os países pobres e o apoio efectivo aos seus próprios esforços para acederem ao desenvolvimento autónomo. Para tanto, os países doadores têm que alinhar coerentemente a sua cooperação internacional com os seus próprios esforços na implementação de reformas amigas do desenvolvimento na economia global. Se as (politicamente populares) transferências não forem suportadas por uma alteração fundamental das estruturas mundiais, as ajudas ao desenvolvimento por parte dos países ricos serão apenas migalhas e escondem o fracasso em concretizar as indispensáveis reformas mundiais ao serviço dos pobres. O objectivo é capacitar os ricos e os pobres a partilharem a mesa, em bases iguais, em vez de deixar aos pobres as migalhas que caírem da mesa dos ricos. Palavras bonitas para acalmar as pessoas não constituem uma ajuda.

4. Avaliação crítica da Organização Mundial do Comércio (OMC) – a realidade vista na perspectiva da justiça

Qual é a situação actual da ordem mundial do comércio? O estabelecimento da OMC em 1995 representou o maior desafio reformador da ordem económica mundial, durante décadas, particularmente porque criou um quadro para toda a área do comércio mundial. Em comparação com o seu antecessor, o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), o conjunto dos acordos da OMC foi alargado para cobrir substancialmente aspectos novos do comércio mundial, tais como o comércio de produtos agrícolas, os serviços e a protecção da propriedade intelectual. Para além disso, a ordem mundial do comércio foi redefinida em termos institucionais, incluindo a introdução de um órgão de resolução de litígios. Tratou-se, de facto, de uma melhoria, porque foram acordadas regras obrigatórias para o comércio mundial. No entanto, muitos dos problemas urgentes dos países pobres permaneceram por resolver ou foram agravados. Na verdade, a estrutura actual do comércio mundial não encontrou ainda o modelo adequado para um desenvolvimento justo.

A Doutrina Social da Igreja tem enfatizado, desde a encíclica Populorum Progressio, quão importante é, especialmente no contexto da economia mundial, promover o desenvolvimento a par da justiça. O critério derivado de justiça desenvolvimentista tem um duplo significado normativo: numa acepção mais instrumental ou funcional, requer que a ordem económica internacional ou nacional não deva impedir o desenvolvimento mas sim apoiá-lo tanto quanto possível. Em termos éticos, as diferentes e mutuamente complementares dimensões da ordem económica devem satisfazer padrões de justiça.

Já se tinham tornado visíveis problemas sérios de justiça com o princípio da justiça transaccional, segundo o qual as condições do quadro económico mundial deveriam garantir transacções económicas justas. Os participantes mais fracos no mercado estão condicionados pelos efeitos de prosperidade macroeconómica de que possam vir a beneficiar, resultantes da troca internacional de bens, na medida em que se reflictam no seu desempenho. Contudo, a prática actual coloca os países pobres em desvantagem, nalguns aspectos importantes. Por exemplo, os altos e continuados níveis de subsídios agrícolas por parte das nações industrializadas distorcem o comércio agrícola internacional. Isto não só limita as perspectivas de venda dos países pobres, que não podem participar na corrida aos subsídios, como compromete também a respectiva produção agrícola para satisfazer as suas próprias necessidades. Como consequência, os países pobres tiveram de abrir excessivamente os seus mercados. Alguns deles conhecem agora fluxos de produtos agrícolas vindos dos países ricos, a preços subsidiados, que reduzem os preços das produções locais. Daí que muitos países pobres tenham negligenciado as suas infra-estruturas agrícolas, o que pode traduzir-se num número crescente destes países passarem a importar mais alimentos do que a exportá-los, apesar das suas estruturas económicas se basearem ainda na agricultura.

A justiça, no interior das estruturas administrativas, depende fortemente do enquadramento da política administrativa e de quem decide quais os regulamentos que são para aplicar ou para abolir e com que calendário. O princípio da justiça processual é então decisivo. A deliberação e o processo de tomada de decisões dentro da OMC têm contudo óbvias deficiências, já que o exigido consenso de todos, por exemplo, é muitas vezes, de facto, reduzido a um acordo encapotado, alcançado entre um pequeno número de países influentes. Não só porque lhes faltam staff e financiamentos, os países mais fracos são dificilmente capazes de intervir no grande número de grupos de negociação paralela na OMC, de penetrarem nos conteúdos difíceis das negociações e de apresentarem declarações fundamentadas. Acordos informais entre as delegações bem equipadas dos países mais fortes determinam frequentemente a deliberação e o processo de tomada de decisões.

Estes problemas de justiça foram encarados há já 40 anos, na encíclica Populorum Progressio. Referindo-se à encíclica Rerum Novarum sobre o capital e o trabalho, Paulo VI enfatizou que o mútuo consentimento não garante por si só tratados internacionais e acordos de comércio justos. Quando as partes estão em posições muito desiguais, o que frequentemente se aplica às relações Norte-Sul, tal pode resultar num acordo injusto (PP, n.59). Isto também é verdade hoje, particularmente quando os tratados internacionais limitam as capacidades dos países pobres para alcançarem um desenvolvimento autónomo e para reduzirem a pobreza. Uma importante regra que deve ser aqui aplicada é o princípio da justiça distributiva, segundo o qual a satisfação das necessidades humanas fundamentais é sempre prioritária. A este respeito, levantam-se problemas com o Acordo sobre os Aspectos relacionados com os Direitos da Propriedade Intelectual (TRIPS) da OMC e a acordada expansão da protecção da propriedade intelectual a áreas que são vitais para a sobrevivência dos pobres. Assim, de acordo com o TRIPS, devem ser requeridas patentes e protegidas as espécies para sementes, algo que é inconsistente com muitas tradições legais. São sobretudo os grupos de empresas fornecedoras de sementes e de alimentos que estão interessados nisto e que dominam cada vez mais a investigação neste campo. Os seus produtos estão-se a tornar cada vez mais correntes e estão a expulsar as espécies tradicionais. Isto põe em perigo o direito aos alimentos por parte dos pequenos proprietários das nações em desenvolvimento, que vivem da agricultura de subsistência. Estes dependem da retenção de parte da sua colheita para semear na próxima estação (direitos dos agricultores); muitos deles não podem gastar em sementes caras, o que a lei de protecção das espécies os obriga a fazer.

Decorrem do Acordo ao Comércio nos Serviços (GATS) da OMC, que se destina a liberalizar os serviços, obstáculos consideráveis à redução da pobreza. A abertura rápida destes mercados, tal como é pedida pelas nações industrializadas, seria bastante preocupante em termos de desenvolvimento, especialmente quando se trata de serviços de interesse geral, que foram na maioria dos casos previamente fornecidos pelo estado, particularmente a água e a energia, bem como a saúde e a educação. Teme-se que a privatização destas áreas possa mais tarde aumentar os estrangulamentos da oferta para os grupos pobres da população e nas áreas mais remotas, uma vez que ali são baixas as perspectivas de lucro para os fornecedores privados. Com vista a remediar estes problemas, e em particular o possível abuso dos monopólios privados, é necessária a devida regulação para promover a concorrência, sendo que as autoridades nacionais de muitos países aplicam impostos excessivos que a dificultam.

Outra pré-condição para o desenvolvimento independente dos países pobres é a justiça de oportunidade na concorrência económica mundial. Uma vez que muitos países pobres têm condições de partida piores, infra-estruturas tecnológicas pobres, problemas económicos e deficiências institucionais, é eticamente exigível uma “discriminação positiva”, ainda que limitada no tempo. Por outras palavras, exige-se um tratamento preferencial de regulações específicas por parte da OMC. Todas as formas de tratamento preferencial e diferenciado, que são em princípio definidas e aplicadas no âmbito da OMC, apenas são justificadas se de facto trouxerem benefícios para os pobres, o que só parcialmente é verdadeiro no caso das medidas adoptadas pela OMC a este respeito.

5. Perspectivas para a reforma e exigências políticas – Partir para a acção.

A economia e o comércio mundiais não são meios, em si próprios, mas devem ser sempre julgados em termos de se saber qual a sua contribuição para eliminar a pobreza e o subdesenvolvimento (Centesimmus Annus, n. 34). Se avaliarmos as estruturas actuais do comércio mundial através destes padrões, os resultados não são satisfatórios. Isto aplica-se em particular ao objectivo de melhorar as perspectivas comerciais dos países menos desenvolvidos, que consta do Preâmbulo da OMC e está também reflectido no oitavo objectivo de desenvolvimento do milénio, centrado no estabelecimento de uma parceria global para o desenvolvimento. Há aqui um desvio particularmente grande entre as aspirações e a realidade. Contudo, é urgente e necessário implementar as reformas da OMC há muito prometidas como amigas do desenvolvimento. Doutra forma, a comunidade internacional de estados será incapaz de alcançar o objectivo da redução da pobreza. É particularmente questionável que, países que são politicamente e economicamente fortes, prefiram cada vez mais recorrer a acordos comerciais bilaterais e regionais, por acreditarem que aqueles servem melhor os seus interesses do que os acordos alcançados no quadro da OMC.

Este é também um risco das negociações dos “Acordos de Parceria Económica”, que estão a ser implementados entre a U.E. e os seus parceiros da África, Caraíbas e Pacífico (países ACP), visando harmonizá-los com os acordos da OMC. O objectivo declarado destes Acordos de Parceria Económica Regional é reduzir as barreiras alfandegárias e promover o comércio em bases recíprocas. Contudo, deveriam ter em conta mais efectivamente as desiguais condições de partida dos parceiros mais fracos. Por esta razão, os países ACP não deviam ser pressionados a abrir os seus mercados demasiado depressa, nem deveriam os parceiros negociar tópicos (tais como a protecção aos investimentos) que foram retirados da agenda de negociações da OMC, sob pressão das nações em desenvolvimento. Isto é inconsistente não só com o princípio dos acordos fidedignos, mas também com o espírito de parceria.

Este e muitos mais exemplos mostram que, em particular, os países pobres dependem de um sistema multilateral de regras fiáveis, que lhes ofereçam melhores perspectivas para defender os seus interesses do que acordos bilaterais ou regionais. Do mesmo modo são igualmente necessárias instituições e instrumentos que tornem possível limitar efectivamente os impactos negativos da integração no mercado mundial, particularmente para os pobres. Uma vez que uma ordem comercial mundial justa e fiável é do interesse comum, todos os membros deveriam reconhecer que vale a pena aperfeiçoar a OMC e deveriam mostrar maior vontade em cooperar nas negociações em curso. Isto aplica-se em particular às nações industrializadas, mas também a países de rendimentos médios, que devem ter maiores responsabilidades na construção de uma ordem comercial mundial mais justa.

Na nossa opinião, as seguintes reformas da OMC são as que melhor servem o desenvolvimento:

Os países pobres necessitam de mais tempo para ficarem isentos de algumas obrigações específicas da OMC, sob certas condições. As regras relevantes, que regulam o tratamento preferencial dos países pobres, precisam de ser revistas, aperfeiçoadas e orientadas em seu benefício. Por seu lado, os países industrializados precisam de eliminar os seus “privilégios”, nomeadamente as constantes distorções do comércio agrícola mundial.

Os países mais fracos deveriam ser eficazmente envolvidos nas deliberações e no processo de tomada de decisões da OMC, para o que deveriam beneficiar de aconselhamento. São também necessárias reformas processuais de modo a dar ao Secretariado da OMC mais competência para trabalhar com maior independência relativamente à influência directa dos países poderosos.

O comércio mundial deveria centrar-se crescentemente nas necessidades sociais e ecológicas. Tal não quer dizer, contudo, que a OMC tenha que definir os seus próprios padrões. Em vez disso, os membros da OMC deveriam respeitar objectivos internacionalmente reconhecidos, tais como os direitos humanos, os direitos fundamentais do trabalho definidos pela Organização Internacional do Trabalho, a convenção do Rio sobre o desenvolvimento sustentável ou os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas como padrões a partir dos quais as suas próprias políticas são avaliadas. Isto aplica-se particularmente à expansão dos direitos de propriedade intelectual e ao comércio dos serviços. As nações em desenvolvimento não devem continuar a ser pressionadas a reduzir drasticamente os seus padrões de protecção relativamente às sementes e a abrir os seus mercados de serviços sensíveis, especialmente quando estão em causa os serviços de interesse geral.

Tais reformas da OMC são urgentes e necessárias, mas não são suficientes para capacitarem os países a lutar contra a pobreza. Para além disso, são indispensáveis mais reformas económicas internacionais, sobretudo iniciativas coerentes para resolver os problemas da dívida de muitas nações em desenvolvimento. Têm sido feitos progressos a este respeito, mas o ainda alto endividamento restringe consideravelmente o espaço orçamental para os países endividados lançarem programas de redução da pobreza. Por esta razão, um deferimento do serviço da dívida não é suficiente. O endividamento deve ser reduzido para um nível tal que mereça a pena o esforço dos países pobres e lhes permita contribuir para o seu desenvolvimento. A encíclica Populorum Progressio referiu-se a este problema muito antes do começo da crise da dívida internacional, que começou em 1982, e apresentou algumas sugestões específicas (PP, n. 54) a este respeito. Se esta orientação tivesse sido respeitada, as dívidas dos países pobres não teriam provavelmente crescido de 50 mil milhões de dólares em 1967 para quase 2 500 mil milhões de dólares em 2000.

Estas referências aos erros do passado não pretendem acalentar um sentimento de conformismo. Devem antes encorajar-nos a utilizar mais os conhecimentos válidos e a tirar partido do nosso tempo. Por isso, faz sentido para todos nós encarar o facto de que somos todos parte da família humana. É uma forte tentação do nosso tempo acreditar que problemas fundamentais de justiça podem ser ignorados, porque supostamente afectam os “outros”. Devemos resistir a essa tentação e assumir as nossas responsabilidades. Ou, segundo as palavras de Isaías (1: 16-17): “Purifiquem-se! Retirem os vossos delitos da frente dos meus olhos; parem de fazer o mal; aprendam a fazer o bem. Que a justiça seja o vosso objectivo: reparem o que está errado…!”.