30.4.08

Nações Unidas criam gabinete de crise para a alimentação

Ana Fernandes, in Jornal Público

As soluções terão de passar pelo curto prazo e por medidas de fundo: alimentar os famintos e voltar a investir na agricultura


A prioridade imediata é alimentar os famintos. Mas todo o esforço que é agora pedido à comunidade internacional não pode deixar de lado as questões estruturais: garantir que os mais pobres conseguem começar a produzir os seus próprios alimentos, investindo na agricultura nos países em desenvolvimento. Foi esta a mensagem deixada ontem pelas Nações Unidas, que criaram um gabinete de crise para fazer face ao problema.

Depois de uma reunião, que teve início na segunda-feira, das 27 agências da ONU, ficou decidido criar um grupo, presidido pelo secretário-geral da organização, Ban Ki-moon, e coordenado pelo seu secretário-geral, John Holmes, para organizar a resposta à crise alimentar. Que é urgente, sublinharam.

Nas últimas semanas, multiplicaram-se os avisos sobre a gravidade da situação: de Março de 2007 a Março de 2008, o índice de preços de alimentos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) subiu 57 por cento. Para quem gasta cerca de 60 por cento do seu orçamento familiar em comida, como é o caso dos mais pobres, o impacto tem sido terrível.

Contas do Programa Alimentar Mundial indicam que, este ano, haverá necessidade de alimentar 73 milhões de pessoas. "As nossas necessidades totais para 2008 ascendem a 3100 milhões de dólares (cerca de 2 mil milhões de euros)", disse Josette Sheeran, director do PAM. "Faltam-nos mais 755 milhões de dólares (483 milhões de euros) por causa do aumento dos preços da alimentação", acrescentou, citada pela AFP e Reuters.
Daí o apelo crescente ao contributo da comunidade internacional, instada a dar a mesma resposta que deu depois do tsunami na Ásia.

Mas a distribuição de alimentos, apesar de essencial nos casos das crises humanitárias, não dá uma resposta de fundo à crise, sublinham vários responsáveis das Nações Unidas.

Num artigo ontem publicado no site da FAO, o director-geral desta organização, Jacques Diouf, sublinha que, apesar de ser "inegável que o aumento dos preços alimentares exacerbou a insegurança alimentar e criou tensões sociais, há, simultaneamente, o perigo de que as medidas de emergência de curto prazo releguem para segundo plano o debate sobre como transformar esta ameaça numa oportunidade para relançar a agricultura, sobretudo nos países pobres."

Por isso, a FAO é mais defensora de ajudas financeira aos pequenos agricultores e tenciona investir - se houver apoios para isso - 1100 milhões de euros para reforçar a produção agrícola nos países mais afectados pela crise. O Banco Mundial vai duplicar a sua ajuda à agricultura africana para 512 milhões de euros.

Os responsáveis pela crise são vários: mais procura, sobretudo por parte da China e Índia, e quebras na oferta, tanto por maus anos agrícolas como pelo desvio de parte da produção para biocombustíveis. O cenário foi agravado por muita especulação e pela escalada do petróleo.

Segundo Diouf, o aumento dos preços constituiria, segundo os fundamentos do mercado, um incentivo a que os agricultores aumentassem as suas produções. Mas em boa parte do planeta isto não está a acontecer. "Em muitos casos, faltam estradas, infra-estruturas, serviços de comunicação, acesso a tecnologias, investigação agrícola e um bom sistema de crédito e comercialização", salienta.

Na realidade, o mundo rural de muitos países em desenvolvimento - sobretudo na África subsariana -, onde estão os mais pobres entre os pobres, não tem capacidade para responder à procura porque não está sequer a receber mais dinheiro por produtos que no mercado mundial não param de escalar. Muitos agricultores comprometeram-se a vender as suas colheitas a um preço fixado antes da recente subida dos preços, salienta o Banco Mundial.

"Mesmo em algumas áreas em que os produtores se apercebem do aumento dos preços, não estão a plantar mais porque receiam o aumento dos custos dos inputs", disse Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. A preocupação prende-se com factores como os transportes e os fertilizantes, que têm também subido.

Além disso, os pequenos agricultores dos países pobres produzem sobretudo para seu autoconsumo e tendem a ser consumidores líquidos, pelo que estão também a ser afectados pelo aumento dos preços, sem colherem benefícios.

Para a FAO, a única forma de controlar seriamente o problema é criar condições ao investimento destes agricultores, recordando que depois da grande crise alimentar dos anos 70, muitos governos asiáticos investiram muitobastante em irrigação e em pesquisa agrícola, "o que permitiu um rápido aumento da produtividade que permitiu que milhões escapassem à pobreza e à fome", diz Diouf. "É urgentemente necessária uma resposta idêntica agora, sobretudo na África subsariana."

Caberá ao gabinete de crise, agora criado, traçar concretas medidas de acção e assegurar-se que estas serão postas em prática. Nele estarão representados todas as instituições das Nações Unidas, o Banco Mundial e o FMI. Mas, para que tenha sucesso, caberá aos países, sobretudo os mais ricos, reforçarem as suas doações.

57% É quanto os alimentos aumentaram entre Março de 2007 e Março de 2008, segundo o índice de preços da FAO.

Apelo à abertura das fronteiras

Corte nas exportações apenas piora situação


O Banco Mundial apelou ontem a que os países não levantem barreiras às exportações para tentar manter as reservas em casa. Essa atitude apenas piora os problemas, salientou Robert Zoellick (na foto), presidente da instituição.

"Estes controlos encorajam o armazenamento, fazem os preços subir e penalizam os mais pobres do planeta", disse este responsável. Vários países, da Argentina à China, tomaram esta atitude.

Também Pascal Lamy, director da Organização Mundial de Comércio referiu os mesmos efeitos da decisão: "É evidente que estas medidas tentam controlar uma maior subida dos preços, mas, a curto prazo, não são uma boa medida económica."

Entre as medidas de médio prazo para solucionar o problema, muitos apontam para o sucesso das negociações de Doha da OMC (ver artigo de Opinião na página 46).
Mas alguns analistas consideram que a situação ainda irá extremar mais as posições. Sobre a mesa está um corte de 75 por cento dos subsídios dos países ricos, mas, ainda recentemente, Berlim juntou-se a Paris na defesa dos apoios da PAC (Política Agrícola Comum). A.F.

A China à conquista de terras agrícolas

A China produz mais de 90 por cento dos cereais que consome, mas tem sido apontada como um dos factores que levou à subida do preço dos cereais - porque a população come cada vez mais e melhor (em especial cada vez mais carne) e os cereais são usados também para alimentar o gado. Mas, numa altura de crise, Pequim está muito interessada em garantir a segurança alimentar - daí que esteja a intensificar a cooperação agrícola com outras nações, ou até a explorar directamente terrenos agrícolas noutros países.

A Rússia e outros países da ex-União Soviética, a América do Sul e África são alguns dos locais onde a China está a procurar investir para garantir alimentos para a sua população - até porque os terrenos agrícolas estão a ser engolidos pelo avanço das cidades e da indústria, e também da desertificação. Números oficiais, citados pela Thomson Financial, apontam para que a área de terra arável na China tenha diminuído para 121.730 milhões de hectares no ano passado - já bem perto dos 120 milhões de hectares que as autoridades designaram como o ponto crítico, a partir do qual o país começará a ter problemas.

De acordo com o jornal Manhã de Pequim, citado pela BBC, há empresas chinesas interessadas em comprar ou explorar, em sistema de leasing, terrenos agrícolas no estrangeiro, anunciou o Ministério da Agricultura. "Desenvolver os recursos de regiões de solo rico e água abundante pode baixar os custos de produção das empresas chinesas", disse Zhang Xichen, líder do grupo Suntime, que tem projectos agrícolas no México e em Cuba, citado pela Thomson Financial.

Em África, a China está ainda a lançar um projecto para financiar a produção de colheitas valiosas (como o arroz) na Libéria e noutros países, durante 50 anos.
A subida dos preços dos cereais a nível global fez disparar a inflação na China - que no primeiro trimestre atingiu oito por cento, o mais alto em 12 anos. Na última década, a população chinesa aumentou 90,5 milhões, mas a produção agrícola per capita diminuiu de 412 quilos (1996) para 378 (2006). C.B.

O futuro de África passa pela mandioca?

A mandioca é um tubérculo muito rico em hidratos de carbono. É o alimento básico de mais de 600 milhões de pessoas


Trocar a farinha de trigo importada pela tradicional mandioca, para fazer pão, é a resposta à subida do preço dos cereais que Moçambique está a ensaiar. É um exemplo do regresso a culturas locais, em detrimento dos cereais importados, usando a ciência para melhorar ou para avaliar novas utilizações, como aconselhava um estudo financiado pelo Banco Mundial e pela FAO divulgado a 15 de Abril, a Avaliação Internacional do uso da Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento.

"Primeiro, testámos a mistura de trigo com dez por cento de farinha de mandioca e não se sentiu a diferença. Passámos para 15, depois para 20 e depois para 25 por cento e sentiu-se uma grande diferença, para melhor", contou à agência Lusa Fernando Chitio, coordenador do Programa Nacional de Investigação de Raízes e Tubérculos do Ministério da Agricultura moçambicano. Para passar a fazer pão de mandioca em grande escala, "o trabalho ao nível de laboratório está feito", diz. O próximo passo será dos políticos.

O Ministério da Ciência de Moçambique está a negociar a cooperação com o Brasil, que hoje dedica boa parte do seu dinheiro para a ciência à investigação agrícola, que decaiu nos países mais ricos. Nagib Nassar, da Universidade de Brasília, ganhou até o Prémio Mundial da Alimentação em 2002, por causa do seu trabalho sobre a mandioca, produzindo híbridos mais resistentes a doenças e condições meteorológicas adversas.
A mandioca é um alimento básico para mais de 600 milhões de pessoas. É um tubérculo, como a batata, resistente à seca, muito rico em hidratos de carbono e, embora originário da América, de onde foi trazido pelos portugueses, é cultivado nos trópicos há séculos. A mandioca pode ser cozida, assada, frita ou seca. Nigéria, Uganda, Quénia, Tanzânia e Congo são alguns dos cerca de 90 países onde é cultivada.

Há alguns projectos internacionais lançados para melhoramento da mandioca - muitas vezes anunciada como a solução para a fome nos países mais pobres, mas sem nunca satisfazer esse potencial. Falta um impulso para que a investigação se traduza em fortes ganhos: a produtividade deste tubérculo aumentou apenas um por cento ao ano nas últimas três décadas, quando a do arroz, trigo e milho subiu dois a cinco por cento anualmente, de acordo com dados da FAO. Em África, as colheitas de mandioca rondam as oito toneladas por hectare, quando potencialmente poderiam atingir 80 toneladas. Clara Barata