16.4.08

Unidades privadas de saúde dão tratamento preferencial a quem tenha seguro

Catarina Gomes, in Jornal Público

Entidade reguladora diz que contratos com seguradoras são incompatíveis com as convenções que as clínicas mantêm com o Estado. Unidades falam de actividade orientada para o mercado


Um utente de uma clínica fisiátrica no Norte do país queixou-se à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) depois de ter esperado mais tempo para ser atendido, por ser do Sistema Nacional de Saúde (SNS), do que doentes particulares e de outras entidades com quem a unidade privada tem acordo. A ERS deu razão ao reclamante e detectou, em contratos assinados com seguradoras de saúde, "cláusulas abusivas" que exigem "tratamento preferencial e prioritário dos seus utentes". Como já recebeu várias queixas deste tipo, decidiu avançar com um estudo sobre a forma como os seguros de saúde "podem estar a criar dificuldades de acesso aos utentes do SNS", disse ao PÚBLICO Joaquim Brandão, vogal do conselho directivo da ERS.

O caso da clínica nortenha foi um dos quatro sobre os quais a ERS se debruçou no ano passado. Emitiu instruções contra as clínicas em causa porque não usavam como critério de atendimento a ordem de chegada e sim a fonte financiadora dos utentes: num dos casos, a diferença entre ser utente do SNS e pagar como particular variava entre fazer um electromiograma daí a quatro meses ou quatro dias. A ERS detectou ainda que utentes do SNS que foram às unidades privadas analisadas, com quem o Estado mantém acordos, também foram discriminados face a subsistemas de saúde e a portadores de seguros de saúde. Há mais cerca de meia dúzia de casos a ser analisados, acrescenta o dirigente.

Um dos operadores respondeu à ERS que agem assim por estar em causa "a sustentabilidade financeira da instituição". Uma outra clínica notou que "a actividade da empresa é dirigida para o mercado, onde os custos e ganhos estão sempre presentes". E as diferenças de pagamento são grandes.

Ecografias a 14 ou a 50 euros

Ao que o PÚBLICO apurou, uma clínica recebe como preço total por uma ecografia pélvica, um dos actos mais banais, 14 euros se o utente for do SNS, 19 se for da ADSE, quase 40 euros se for de uma seguradora e mais de 50 se se apresentar como particular. Nos primeiros dois casos, o reembolso demora vários meses; nas seguradoras leva menos tempo (pode rondar um mês) e o particular paga na hora.
No caso da clínica do Norte, a unidade defendeu-se ainda dizendo que os utentes do SNS são em número muito superior aos restantes e que a clínica tem acordos com entidades privadas que tem obrigatoriamente de atender, como as seguradoras.
A ERS detectou nos contratos celebrados com três seguradoras "cláusulas de tratamento preferencial e prioritário dos seus utentes": numa delas lê-se que "os sinistrados têm preferência na admissão a tratamento, que é logo iniciado, não sendo admitidas quaisquer listas de espera". A ERS considerou estas "cláusulas claramente abusivas" e, ao mesmo tempo, não compatíveis com as convenções que as clínicas celebraram com o Estado, que prevêem a igualdade de tratamento, podendo apenas ser dada prioridade "a situações de emergência".

Desde então, a ERS tem recebido várias queixas, afirma Joaquim Brandão. A situação "não é bombástica", mas também "não são casos pontuais". Por isso, a entidade reguladora decidiu avançar com um estudo sobre as reclamações, onde também irá analisar os contratos de seguros de saúde "que podem criar dificuldade no acesso aos utentes do SNS", nota. O responsável explica que do estudo poderá resultar uma recomendação para as unidades privadas no sentido de não poderem assinar contratos com seguradoras que colidam com as convenções do Estado.

"Há cada vez mais seguros de saúde que têm que conviver com o SNS. Não podem atropelar-se", diz. Do lado das seguradoras, Joaquim Brandão afirma que a ERS não tem competências para exigir a mudança de contratos, mas que já se reuniram com o Instituto Português de Seguros para discutir o assunto.

a Bruno Henriques, presidente da Federação Nacional dos Prestadores de Cuidados de Saúde, que representa cerca de mil clínicas com convenções com o Estado, afirma que as unidades privadas assinam contratos pré-estabelecidos com as seguradoras - "não podemos alterar as cláusulas", diz. Concorda que "são abusivas" mas explica que as regras de tratamento prioritário "não têm efeitos práticos", até porque uma clínica nunca assina contratos só com uma seguradora.

Em vez de agir sobre os operadores, Bruno Henriques considera que a Entidade Reguladora da Saúde deveria sim recomendar que estas "cláusulas ilegais sejam banidas dos contratos". E defende que os casos de discriminação de utentes são residuais, como provam as quatro queixas, uma insignificância num sector com milhares de prestadores e onde "a queixa está muito disponível".

Desde a década de 1990 que o Estado deixou de celebrar convenções com unidades privadas de saúde. A assessora do Ministério da Saúde, Helena Marteleira, diz que durante este mês a proposta de regulamentação sobre as novas convenções deverá ser posta à discussão.

A Associação Portuguesa de Seguradores respondeu que "não se pode pronunciar sobre um assunto que desconhece". No final de 2006, 1,6 milhões de pessoas tinham seguro de saúde.