21.4.08

Uso de cereais para combustível agravou fome

Eduarda Ferreira, in Jornal de Notícias

Nem tudo o que parece verde é. Esta a lição que a nível global está a ser aprendida. A procura de alternativas ao petróleo teve já alguns efeitos desastrosos nas reservas alimentares do planeta, disseram-no já diversas entidades das Nações Unidas, cujos alertas previam mais fome, revoltas dos pobres em muitas regiões e também um desgaste ecológico. A crise do pão já está a ser sentida por milhões, na quantidade e no preço.

Já há tumultos em alguns pontos do globo, como os Camarões, Indonésia, Haiti e o Níger. E a directora do Programa Mundial de Alimentos, da ONU, avisou que terá de ser retirada a ajuda a 100 mil crianças, se os doadores não acrescentarem os seus subsídios para compensar a subida do preço dos cereais. Os Objectivos do Milénio para retirar da fome alguns milhões de pessoas dificilmente serão cumpridos nestas circunstâncias. Esta é só uma faceta da realidade, que também inclui os muitos milhões de África, Ásia e América Latina já antes a braços com a carência alimentar. Havia 800 milhões de famintos no mundo. Tudo corre agora de mal a pior.

Efeitos perversos

Segundo a ONU, desde há 40 anos que as reservas alimentares do planeta não estavam tão desprovidas. No "banco dos réus" estão as mudanças climáticas, causando perda de colheitas. Mas não só a tentativa de se substituir o uso exclusivo do petróleo por biocombustíveis , com o intuito de diminuir as emissões de gases com efeito de estufa, teve efeitos perversos.

Desflorestou-se mais para fazer cultivo de cereais e oleaginosas. O impacto ambiental não se ficou pela perda de largas zonas de floresta cheia de biodiversidade, como vem acontecendo no sudeste asiático; a factura para o planeta foi paga em mais emissões de CO2 devido às queimadas e ainda pelo uso de fertilizantes que também no seu fabrico contribuem para tais emissões. Países como a Holanda, que proclamavam uma filosofia verde, e por isso investiam em palmares para produção de biodiesel no sudeste asiático, manifestaram-se perplexos com a reversão dos efeitos.

Solos tradicionalmente afectos aos cereais e a oleaginosas como o milho e girassol tiveram a sua produção desviada para o fabrico de biocombustíveis.

Não é de estranhar que, ontem, em Roma, no Fórum Internacional de Energia, tanto um membro da OPEP, ministro do Qatar, como o alto responsável por uma das gigantes petrolíferas tenham dito que os biocombustíveis não são a solução energética e que a crise do pão não cabe ao ouro negro saído dos seus poços. Na verdade, para a alta do preço dos cereais há outros contributos está em acção também "um bando de especuladores e bandidos financeiros", acusou ontem Jean Ziegler, relator especial da ONU para o direito à alimentação. No coro dos protestos entra também o ministro alemão da Agricultura, Horst Seehofer, que numa entrevista ao "Bild am Sonntag" fustigou os grandes grupos agro-alimentares pela forma como dominam o comércio de sementes e as impõem, nomeadamente as geneticamente modificadas, aos agricultores. Tais práticas nos EUA, segundo disse, vão determinar o aumento do preço das forragens para animais na ordem dos 600%. Eis aí outro problema para o abastecimento alimentar, que teria de conseguir a inclusão de faixas das populações de economias emergentes, como a China e a Índia, ascendendo na última meia-dúzia de anos a uma classe média e a um prato mais cheio.