28.7.08

"A comunidade mais pobre e mais discriminada do país"

Andreia Sanches, in Jornal Público

Os media têm acompanhado a saga dos moradores ciganos da Quinta da Fonte - mas ainda impera a ignorância sobre estes portugueses

Vivem em Portugal há centenas de anos e mantêm alguns dos valores que não há muito tempo eram transversais à sociedade. A família é central. O adultério intolerável. A violência no grupo castigada. E a ideia de que são nómadas pertence ao passado.

Nos últimos dias, a comunidade cigana tem estado no centro das atenções. Tudo por causa do tiroteio entre moradores de etnia cigana e de origem africana que virou do avesso a Quinta da Fonte, em Loures. "Há uma grande ignorância sobre a comunidade cigana e os estereótipos constroem-se quando não se conhece", diz Vítor Marques, fundador da União Romani Portuguesa. E há uma tendência para a atribuir a questões culturais conflitos que são essencialmente de natureza social.

"Na marginalidade, todos os confrontos são violentos, independentemente das etnias envolvidas", afirma Luís Pascoal, coordenador do gabinete de apoio às comunidades ciganas do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI, tutelado pelo Governo).

Afirma Luís Pascoal com tristeza: "Há um profundo preconceito instalado. Para muitas pessoas, quando nasce uma criança cigana não nasce um português, nasce um cigano pequeno."

Esta é a comunidade "mais pobre e mais discriminada do país", acrescenta José Gabriel Pereira Bastos, investigador e professor do Departamento de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa.

Quem são e como vivem estes portugueses? À falta de estatísticas - a lei não permite que se recolham dados que identifiquem os cidadãos em função da sua etnia -, ficam as respostas de três especialistas (ver caixa).

50 mil a cem mil é o número de ciganos em Portugal. Não há um valor exacto; a lei não permite distinguir etnias nos censos São entre 50 mil e cem mil

A falta de consensos começa no mais básico: quantos são? Luís Pascoal diz que se estima que vivam no país "entre 50 mil e 60 mil" portugueses ciganos. Já Vítor Marques entende que esse valor está incorrecto e que devem existir entre 80 mil e cem mil. São oriundos do Norte da Índia e a chegada à Europa terá acontecido por volta do século XIV. Em Portugal, a primeira referência literária aos ciganos é de 1510. A maioria dos portugueses ciganos que hoje habitam o território são, pois, descendentes de ciganos que vivem em Portugal desde o século XVI e XVII.

O nomadismo já foi...

As maiores concentrações de famílias ciganas estão nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e já quase não existe nomadismo. "Os que são nómadas só querem uma casa", diz Pereira Bastos. Até conseguirem, "vão sendo enxotados pela GNR".

... mas ainda há barracas

Não se sabe ao certo quantos vivem em habitações degradadas. A maioria mora em bairros sociais ou está a aguardar em barracas que lhe seja atribuída uma casa, diz Vítor Marques.

Ciganos com casa própria serão poucos. E mesmo quem tem posses tem dificuldades: "Precisam de pedir a alguém de confiança, não cigano, que faça o negócio, porque o estigma que ainda existe é que é perigoso vender alguma coisa a um cigano. Já houve várias queixas por discriminação, sem resultados."

Feiras são o maior sustento

"Há essencialmente três comunidades muito diferentes no modo de viver", diz Pascoal. "Uma tem como actividade principal a produção de cestos e a recolha e venda de sucata; concentra-se sobretudo no interior do Norte e Centro do país, e tem rendimentos muito baixos. Depois, há os que vivem sobretudo da criação de cavalos, no Norte e Alentejo. São um grupo reduzido", explica. Finalmente, a comunidade feirante é a que tem mais peso. "Concentra-se nas zonas urbanas, está estabelecida em casas, tem as suas carrinhas, percorre as feiras, trabalha muito", diz o fundador da União Romani.

Foram e são perseguidos

Há ideia generalizada de que os ciganos são pouco permeáveis à mudança. Pereira Bastos corrige: "Têm uma cultura de sobrevivência, organizada de forma a impedir a sua extinção. É que foram feitos todos os esforços em toda a Europa, e em Portugal também, para extinguir os ciganos. Decretou-se a pena de morte, houve declarações literais para se exterminar 'esta raça'." No reinado de D. Maria I, mandava-se que os filhos dos ciganos fossem retirados aos pais. Em pleno século XXI, o regulamento da GNR ainda manda que lhes seja prestada especial vigilância e há registos recentes de autoridades locais a comunicarem que não os querem por perto.

Analfabetismo muito alto

A taxa de analfabetismo dos portugueses ciganos rondará os 80 por cento, estima Marques, que está a fazer um mestrado sobre abandono escolar. Mas há cada vez mais crianças na escola. Os últimos dados recolhidos, em 1997/98, revelam contudo que apenas 55,4 por cento das que estavam inscritas no 4.º ano do 1.º ciclo do ensino básico tiveram aproveitamento. A média nacional era de 87,7 por cento.

Lei cigana está acima da Lei

A lei cigana é a lei aplicada pelos homens mais velhos e mais respeitados. Não está escrita em nenhuma parte, mas regula diversas áreas da vida da comunidade. O adultério é gravíssimo. Fazer batota nos negócios com outros ciganos é intolerável. Um cigano que agride outro cigano é responsabilizado e deve ir-se embora, explica Pascoal. Também é proibido um cigano mentir a outro cigano - "só se pode mentir aos 'senhores'", a designação que os portugueses ciganos utilizam para se referirem aos brancos não ciganos. "Enquanto a sociedade maioritária se rege pela lei aplicada pelos tribunais, a comunidade cigana raramente recorre aos tribunais", diz Vítor Marques. Por exemplo, se um cigano mata outro cigano, o mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, algum familiar da vítima a vingue. Neste caso, "a honra lava-se com sangue".

A mulher deve ser casta

A mulher deve casar uma única vez e para toda a vida. Se fica viúva aos 20 anos, não voltará, em princípio, a casar, cortará o cabelo e usará um lenço preto. O casamento acontece cedo, pode ser aos 14, 15 anos. E, durante a cerimónia, são feitos testes de virgindade. "No mundo católico a virgindade é também altamente valorizada, simplesmente os costumes actuais são diferentes. Nalguns aspectos, os ciganos são uma espécie de portugueses antigos, que mantêm valores que já não estão na moda", diz Pereira Bastos.

A família é o centro

A família alargada, que pode ter 50, 60 pessoas, é a base da organização social e faz questão de manter a proximidade e a cooperação. Todos participam na educação das crianças. A partir dos sete anos, os meninos começam a acompanhar os pais às feiras para aprender. "Nunca foi percebido pela escola que isto também faz parte da educação de uma criança cigana", lamenta Marques.

Mistura étnica aceite

Uma mulher cigana que casa com um não cigano é, por regra, expulsa. O mesmo pode não se passar com os homens que casam com não ciganas, diz Pereira Bastos. De resto, e apesar das palavras violentas que moradores ciganos e de outras etnias têm trocado na Quinta da Fonte, não há uma tradição de conflito dos ciganos com outras comunidades, asseguram os entrevistados pelo PÚBLICO. "Há vários exemplos de bairros onde todos vivem pacificamente", diz o fundador da União Romani. O caso da Quinta da Fonte é isolado, sustenta.

Crimes ciganos

Os portugueses ciganos estão sobre-representados na população prisional portuguesa. A Justiça tem uma mão mais pesada na hora de os julgar, acusa Pereira Bastos. Não que não haja delitos na comunidade, nomeadamente de tráfico de droga e armas, em pequena escala. "Se o mercado de trabalho lhes fecha a porta, se a escola não os integra, se o sistema os olha de lado... são as vicissitudes da vida", diz Vítor Marques. "Mas a grande maioria dos ciganos não está ligada a negócios ilícitos, sublinha Pascoal.