21.7.08

Sem-abrigo tomam destino nas próprias mãos

Pedro Olavo Simiões, in Jornal de Notícias

Movimento surgido no Porto quer alargar-se a todoo país e pôr a nu alegadas irregularidades na assistência

"Vidas ao Luar" será, em breve, nome de jornal que não se vê nas bancas. É parte de um projecto nascido no seio dos sem-abrigo, que quer partir do Porto para todo o país e que acusa, para já em abstracto, o negócio da caridade.

Daniel Horta Nova, mentor do recém-criado Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo (MASA), tem discurso variado. A amargura convive com a esperança, na fala e nos versos que publica em blogue. A vontade de pôr as mãos na massa junta-se às denúncias de irregularidades que diz ter sentido na pele, cometidas "por associações-fantasmas" que, garante, fazem com que os que caíram na rua sejam transformados em "negócio que engorda muita gente". A acusação abstracta, mas não generalizada, será, adivinha-se, concretizada pelo próprio no jornal que se transformará em pilar financiador do movimento.

Importará perceber, primeiro, o que pretende o MASA, que ontem abriu as portas de um espaço na Rua do Visconde de Setúbal (Paranhos, Porto) onde também será possível comer e dormir, mas que não serve para comer e para dormir - ou seja, as cinco camas disponíveis e algo que possa confortar os estômagos só existem para situações de emergência. Tal como a roupa recolhida apenas para dar a quem manifestamente precise, em determinado momento. Tudo é exclusivamente destinado aos sem-abrigo (condição comprovada pelo movimento) e não a outros cidadãos carenciados. Somar-se-ão, entre outras valências, gabinetes de assistência médica e dentária, apoio jurídico ou um espaço de convívio a funcionar das 9 às 23 horas.

"O nosso objectivo é salvar gente, não alimentá-la", diz Daniel Horta Nova, explicando que os membros do movimento têm de seguir um programa, que se inicia com a preparação psicológica para deixar a rua, a cargo de técnicos qualificados (voluntários) e pode culminar na colocação num posto de trabalho, em função de qualificações e experiência, proporcionado por alguma das empresas que colaboram com o projecto. "Eu caí na rua, saí da rua e voltei à rua por opção", explica, desfiando uma história de vida que aqui não cabe mas que coincidirá com tantas outras, até na forma como o próprio assume que a queda se deveu, acima de tudo, à incapacidade que teve de lidar com a adversidade.

Alentejano, viveu em Lisboa, aí perdeu o tecto, assim transitou para o Porto, em 2004. "Comecei a ver que na rua havia gente muito boa", diz, lembrando também os tempos de pernoita numa instituição a que chama "canil humano" e que acusa, como a outras, de não dar aos sem-abrigo apoio correspondente aos subsídios recebidos. Tal não será regra geral, mesmo aos olhos do MASA, que está ligado a várias associações. Mas fica dada a garantia de que, a seu tempo, as irregularidades serão devidamente reveladas.

Daniel Horta Nova diz que o poder político não está interessado em resolver o problema, insistindo em que os próprios terão de lutar pelo regresso à sociedade da aceitação. Porque "ser sem-abrigo é uma revolta".