1.8.08

Salários podem vir a ser pagos em espécie sem acordo do empregado

João Ramos de Almeida, in Jornal Público

Pagamento do salário em espécie não é novidade. Há sectores que o praticam. Mas o Governo deixou a decisão apenas à entidade patronal


A proposta de lei de alteração da legislação laboral prevê que o trabalhador já não tem de dar o seu acordo para que parte da retribuição a que tem direito seja paga em espécie. A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) está contra.

A União Geral dos Trabalhadores (UGT) e a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) confirmam que a questão não estava no acordo tripartido com o Governo. Já o Governo não respondeu ao pedido de esclarecimento do PÚBLICO. O pagamento das retribuições em espécie não é novo. Conceptualmente, trata-se de toda a retribuição que não é paga em dinheiro e representa uma prática que abrange diversas actividades. É o caso, por exemplo, da pesca, em que parte da retribuição é dada em peixe. Muito recentemente, os mineiros de Aljustrel queixaram-se de lhes terem sido retiradas as senhas de leite (um litro por dia útil), uma "regalia conquistada há mais de 30 anos". Na panificação, recebe-se em pão e na hotelaria e restauração são concedidas refeições. Na banca, espalha-se o pagamento de seguros médicos ou de saúde, tickets refeição, carro da empresa, telemóvel ou plano de pensões.

O próprio Instituto Nacional de Estatística (INE) contabiliza o seu valor no âmbito das contas nacionais, mas não as divulga. Os valores são integrados na rubrica "Ordenados e salários". O Código de Trabalho de 2003, em vigor, também a prevê. Mas no caso das "prestações de outra natureza" é necessário o acordo do trabalhador. "As prestações não pecuniárias devem destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família". E essa parte da retribuição "não pode exceder a parte paga em dinheiro", salvo se a regulamentação colectiva assim o determinar. Ora, a proposta de alteração da legislação laboral manteve o que estava em vigor, mas deixou cair a obrigatoriedade de haver um acordo com o trabalhador. Será isso importante?

Advogados divididos

O departamento laboral de um dos grandes escritórios de advogados A.M.Pereira, Saragga Leal, Oliveira Martins, Júdice e Associados (PLMJ) considera que terá um impacto reduzido. "Embora esta alteração pudesse ter algum impacto em determinados sectores de actividade, nomeadamente no sector da distribuição, o mesmo é limitado pelo relativo desuso em que caiu, actualmente, a satisfação da retribuição em espécie", refere um estudo sobre a proposta de lei.Já Maria da Glória Leitão, sócia do departamento laboral de outro dos grandes escritórios, a firma Gonçalves Pereira Castelo Branco, considera que a medida poderá dar que falar. A alteração implica que "a entidade patronal poderá instituir a remuneração em espécie, mas, com dois limites. Por um lado, o valor da remuneração não pode baixar. Por outro, não se poderá alterar unilateralmente a forma de pagamento (em espécie ou dinheiro) que tiver sido contratualmente estipulada".

E poderão os aumentos salariais ser em espécie? O legislador parece ter tido a preocupação de evitar o uso da retribuição em espécie. Mas, para Glória Leitão, "em caso de aumentos decididos pela entidade patronal, e se a lei admitir que a entidade patronal pode definir o que é pago em dinheiro e em espécie, sim, poderão". O código prevê todavia o que pode ser incluído e em que proporção da remuneração mínima nacional. Por outro lado, "se os aumentos estiverem acordados em convenção colectivo de trabalho (CCT), então a CCT definirá como serão realizados os aumentos salariais". A CGTP nem quer ouvir falar na questão. Arménio Carlos, da comissão executiva, considera que a proposta coloca nas mãos da entidade patronal uma decisão importante e que "o desaparecimento da obrigatoriedade pode levar a interpretações excessivas por parte das entidades patronais". Trata-se de uma "hipótese inadmissível".

Mas será que é isso que o Governo pretende aprovar no Parlamento? A UGT e a CIP garantem que o assunto não foi discutido nem acordado na concertação social. As duas organizações estão a estudar a proposta. Gregório Novo, da CIP, já encontrou outras discrepâncias. A UGT promete para Setembro o seu parecer global. E o Governo não respondeu até ao fecho da edição às questões do PÚBLICO.