22.10.08

"Os pobres também podem ser integrados no meio dos ricos"

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Na Foz do Douro, no Porto, cruzam-se endinheirados e carenciados. Alguns têm o mesmo privilégio de ter vista sobre o rio e o oceano - mas estiveram quase a perdê-lo


Em poucos lugares a desigualdade será tão gritante como na Foz do Douro. Da janela do anexo que "Tony Mecânico" construiu sem o aval da câmara vê-se o rio, o oceano e o apartamento de Belmiro de Azevedo - o segundo homem mais rico em Portugal, só ultrapassado por Américo Amorim.

Aquela janela podia já não existir. Os moradores do Bairro Rainha D. Leonor ficaram em alvoroço com a ideia lançada em 2001 pelo então presidente da Câmara do Porto, Nuno Cardoso. O conjunto de habitações rasteiras não era "passível de obras". Tinha de ir abaixo. Rui Rio prometeu recuperar o velho bairro situado entre a Cantareira e o Ouro, não o entregar à especulação imobiliária.

"Disse que os pobres também podiam ser integrados no meio dos ricos", recorda Arnaldo Silva, da Associação de Promoção Social da População do Bairro Rainha D. Leonor. "E podem." E este ano, por fim, as obras avançaram.

Já estão oito prontas - espaçosas, pintadas de branco, com jardim em frente. Há 20 em obras. A mãe de "Tony Mecânico", que paga 35 euros por um T3, pagará 175 euros por um T2 - 20 por cento do rendimento bruto, um falso rendimento, porque o tem de dividir com um filho. Pelo menos não terá de mudar de sítio. "Devemos ser aves raras", diz. Nunca saíram da Foz. E só vêem sair dali quem ali nasceu e chegar quem não é dali e tem poder de compra.

Uma cidade desigual

Virgílio Borges Pereira, investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, estuda uma cidade muito desigual num dos países da OCDE com pior distribuição de riqueza. Há um centro desertificado, um oriente periférico, um ocidente mais endinheirado. E é dentro desse ocidente que se notam as maiores desigualdades. O investigador aponta a Foz velha, em perda progressiva, e perto dela "condomínios cada vez mais luxuosos". E zonas como os Pinhais da Foz, com vivendas faustosas e bairros sociais ao fundo.

Os irmãos Pintainho mudaram-se para a Foz. De dia fazem de conta que arrumam carros na Rua João de Barros, chamam "doutor" ou "doutora" a quem interpelam nas esplanadas. Ao cair da noite enfiam-se numa casa devoluta, degradada, secreta. A câmara despejou-os há meio ano do Bairro de Aldoar - não pagavam renda há 15 anos, desde que a mãe morrera. E eles arranjaram uma escada para entrar em casa a cada noite, até que uma vizinha os denunciou e a autarquia emparedou portas e janelas. Mudaram-se para "onde há dinheiro".

Aguiar Branco, o antigo ministro da Justiça, mora na João de Barros. É vizinho de Manoel de Oliveira, Júlio Machado Vaz, Jesualdo Ferreira. Na zona da Avenida Marechal Gomes da Costa, António Oliveira, Fernando Gomes, Valentim Loureiro. Em frente ao Parque da Cidade, Pinto da Costa, Luís Filipe Menezes. Na Avenida da Boavista, Rui Moreira. Lá ao fundo, Miguel Cadilhe.

Aguiar Branco confronta-se com a desigualdade ao olhar pela janela - os caixotes do lixo, em frente, são muito concorridos à noite. Rui Moreira não. Às vezes batem à porta da mansão a pedir algum dinheiro. "No Porto havia a tradição de cada um ter os seus pobres, há pessoas que me conhecem e sabem que podem contar com isso." Mas quem mais interpela o presidente da Associação Comercial do Porto são os arrumadores toxicodependentes, como os Pintainhos. Embora esteja a surgir outra figura: a do idoso. Ainda há dias um pediu-lhe "10 ou 20 euros para jantar".