22.11.08

SOS Criança quer ser de novo uma linha para jovens angustiados

Andreia Sanches, in Jornal Público

A linha recebeu 61 mil apelos em 20 anos. Mas alguns direitos das crianças ainda estão por reconhecer - como andar de carro em segurança


Nasceu para ser um recurso das crianças. Transformou-se sobretudo numa linha para os adultos (pais, professores, médicos, cidadãos anónimos) denunciarem situações de violação dos direitos dos mais novos. O SOS Criança nasceu há 20 anos. Recebeu perto de 61 mil apelos telefónicos - casos de mendicidade, de abuso sexual, de negligência, entre outros. Mas agora tem uma ambição: ser o número que as próprias crianças marcam quando se sentem sós ou estão tristes.

"A vocação deste serviço é ser a voz das crianças em Portugal. E, no início, quando este serviço absolutamente pioneiro no país surgiu, quem nos contactava mais eram, de facto, crianças até aos 18 anos", diz Manuel Coutinho, psicólogo e coordenador do SOS.

Duas décadas é tempo suficiente para que esses meninos sejam hoje adultos. "E temos pessoas que nos telefonam e dizem: 'Se hoje estou vivo é porque no passado vos contactei.'" Pessoas que quando eram jovens passaram um mau momento, pensaram no suicídio. "A minha grande ambição é que este serviço recupere essa valência: ajudar crianças e jovens angustiados."

Actualmente, os adultos são a esmagadora maioria dos que ligam para o SOS para falar em nome das crianças. Estas são apenas quatro por cento dos autores das chamadas. "Sexualidade, questões relacionadas ao bullying, com a violência em geral, com a ideação suicida" são alguns motivos que levam os mais novos a ligar.

Mas Coutinho diz que é preciso ir mais longe. "Este conjunto de problemáticas pode parecer o parente pobre das questões que nos chegam, mas não é. Pomos muito a lupa em cima das crianças em perigo, dos maus tratos, mas há todas as outras questões. Há muitos jovens que estão em sofrimento, partidos por dentro, têm grandes dificuldades em organizar-se, estão sozinhos, raparigas que engravidam e não sabem como lidar com a situação, como contar aos pais..." Muitos precisam de alguém que os ajude a pensar: "O SOS é o serviço ideal. Aqui trabalham psicólogos, educadores, assistentes sociais, juristas. Se ouvirmos as crianças no tempo certo ajudamo-las a ser adultos mais felizes".

Na "pré-história"

Em 20 anos, muito mudou. Em 1989 "as pessoas não se envolviam se viam uma criança maltratada". Aos poucos, contudo, a linha que sobrevive em grande medida com apoios do Estado - e que, segundo Coutinho, nunca nenhum Governo pôs em causa, "fosse mais à esquerda ou mais à direita" - foi ganhando espaço.

"Numa fase inicial, as problemáticas mais frequentes que nos eram apresentadas relacionavam-se com a mendicidade, o mau trato físico. Posteriormente, começaram a surgir os conflitos familiares, o mau trato psicológico, o abuso sexual."

Só entre 2004 e 2007 houve 2100 apelos relacionados com aquilo que o SOS classifica como "crianças em perigo" - situações que não correspondem ao mau trato físico, ou ao abuso sexual, mas envolvem histórias igualmente graves e muito díspares, "da criança que acompanha a mãe quando esta vai prostituir-se, à que costuma ir com os pais toxicodependentes aos locais onde estes compram droga". Casos específicos de maus tratos físicos na família foram 1566 e de abuso sexual 505. Muitos apelos envolvem mais do que uma criança.

"Hoje as pessoas já não permitem que esteja exposta a uma situação de perigo", diz Coutinho. Mas Portugal tem ainda um caminho longo para percorrer no que diz respeito ao integral respeito pelos direitos das crianças: "Se uma criança só come bolas-
-de-berlim também está em risco e justifica-se uma intervenção na família. E havemos de chegar ao dia em que as pessoas começam a ligar para o SOS Criança quando vêem crianças no banco da frente do automóvel, sem cadeiras de retenção. Ou num carro com as janelas fechadas e os pais a fumar lá dentro. Ainda estamos um bocadinho na pré-história".

Contactos SOS Criança: 217 931 617/800 202 651/116 000 (número europeu da criança desaparecida).

"Temos pessoas que dizem: 'Se hoje estou vivo é porque no passado vos contactei'", diz o psicólogo Manuel Coutinho