27.12.08

Famílias numerosas, pobres e peritas em "fazer ginástica"

Andreia Sanches e Maria José Santana, in Jornal Público

Casais com três ou mais filhos são os mais vulneráveis à pobreza, segundo o INE. Luís, Rui e Ana contam o que é que isso significa, afinal


O casal Melo vive em Avelãs de Caminho, concelho da Anadia, tem seis filhos, três dos quais dependentes, e por vezes não tem muito mais que 600 euros para gerir durante o mês. O casal Elias, de São Domingos de Rana, em Cascais, também tem três crianças a cargo, a mais velha das quais com nove anos. Ganha 900 euros e paga 480 de renda da casa. Qualquer uma destas famílias faz parte do grupo mais vulnerável à pobreza em Portugal.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), que divulgou recentemente os resultados do último Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, 43 por cento dos agregados constituídos por dois adultos com três ou mais crianças viviam, em 2006, com rendimentos abaixo do limiar de pobreza. Isto quando a taxa da pobreza da população em geral era de 18 por cento.

Para o INE está em risco de pobreza quem tem "um rendimento anual por adulto equivalente inferior a 4544 euros (379 euros por mês)".

Luís Elias, de 47 anos, é um homem atento, ouve as notícias e os debates na Assembleia da República. Diz que até fica "com medo" quando se fala de crise e ouve o primeiro-ministro dizer que não se esperam tempos fáceis. "O dinheiro que temos já é insuficiente."

Recebe o PÚBLICO na sala pequena, mas acolhedora, do apartamento onde vive. São quase oito da noite e os três filhos (Maria, de seis anos, Rodrigo, cinco, João, nove) esgotam as últimas energias de um dia de brincadeira. A mulher, Sandra, de 31 anos, ainda não chegou do trabalho, está algures num autocarro parado no trânsito, a meio caminho entre Lisboa e São Domingos, percurso de cerca de 20 quilómetros que faz diariamente duas vezes por dia - de resto, só em passes sociais para toda a família são mais de 170 euros mensais.

Luís teve um acidente há anos e ficou a coxear desde então. Tem dores. Não pode voltar a ser motorista. Está a fazer um curso de pastelaria e recebe uma bolsa de 224 euros. Já Sandra é recepcionista e ganha 700 euros.

Feitas as contas, seria impossível aos cinco viver com este rendimento depois de paga a renda da casa de quase 500 euros, o passe, a luz e a água, a escola dos miúdos, os cerca de 200 euros por mês em supermercado. Luís pede às crianças para irem brincar para o quarto. Há coisas que não precisam de ouvir.

"A minha irmã paga a mensalidade do mais velho. Pelos outros dois, as senhoras da escola, que têm sido umas queridas, fazem uma mensalidade de 180 euros, com alimentação", diz. O casal optou por uma escola privada, porque assim os miúdos ficam todos juntos, é mais fácil ir levá-los e buscá-los, já que não há carro na família, e estão protegidos e com actividades o dia todo. "Temos que fazer ginástica. A educação é uma coisa importante."

Bolos com magia

A situação só não é dramática porque a família conta com a ajuda de uma irmã de Luís, o apoio do Centro Comunitário da Paróquia de Carcavelos, que lhes fornece alimentos, e por vezes aparecem uns extras: "Os pais dos miúdos na escola encomendam-nos bolos quando os filhos fazem anos".Luís tem o sonho de vir a ter um atelier de pastelaria caseira. Para já, é com a mulher, na cozinha lá de casa, que faz bolos em forma de joaninhas, carros coloridos, flores e campos de futebol. Não tem atelier, mas tem um blogue. Chama-se boloscommagia.blogspot.com.

Portugal foi o país da União Europeia onde a pobreza mais diminuiu nos últimos oito anos. Mas, no que diz respeito à situação específica das famílias numerosas, os números têm-se mantido altos. De 2005 para 2006, até pioraram: a taxa de risco de pobreza subiu cinco pontos percentuais.

O país estava em segundo lugar, a seguir à Letónia, no ranking dos que apresentam piores indicadores a este nível, de acordo com o gabinete de estatística da União Europeia, que analisa 23 Estados.

A família Melo, por exemplo, é uma das muitas famílias portuguesas que já conheceram melhores dias. Noutros tempos, conseguiu mesmo construir uma casa onde vivia com os seis filhos. Até que o pai da família, Rui António, teve um problema de saúde - também numa perna, como Luís.

Atribuíram-lhe uma pensão de invalidez de 230 euros - que, sendo insuficiente, o obriga, ainda assim, a manter um trabalho numa empresa de cerâmica. "O problema é que passo muito tempo de baixa", lamenta Rui, e o ordenado sai mais pequeno. Em breve, vai ter de regressar ao hospital e sujeitar-se ao salário mínimo da mulher e à pensão.

Na casa da família Melo, há algumas regras básicas que todos parecem ter aprendido. As compras do mês são sempre feitas numa das superfícies comerciais mais baratas da zona e os produtos que entram para o carrinho não vão além dos bens essenciais.
A roupa que usam, salvo raras excepções - particularmente no que diz respeito às crianças -, é aquela que vão recebendo de alguns familiares e conhecidos. E grande parte do horário pós-laboral do casal é ocupado na lida do pequeno quintal da casa, para aproveitar ao máximo o que a terra lhes pode dar para a alimentação diária.
Actualmente, Maria Lucília, auxiliar numa instituição particular de solidariedade social, e Rui apenas têm consigo três filhos (Isabel, com 10 anos, David, com nove, e Samuel, com cinco), mas, "até há bem pouco tempo, estiveram aqui os seis", lembra o pai.

É certo que, agora, são menos bocas para alimentar, mas Maria Lucília faz o reparo: "Curiosamente, há uns anos, tanto eu como o meu marido ganhávamos mais, e a vida não estava tão cara".

Rui sente uma grande revolta. Queixa-se da falta de respostas que tem sentido por parte do Estado. "É um padrasto. Paguei sempre impostos e não me sinto respeitado."