14.12.08

Grandes fortunas devem ser taxadas para apoio aos pobres

António Marujo e Graça Franco, in Jornal Público

Presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz defende criação de fundo de emergência para combate às situações de pobreza

Manuela Silva, economista de profissão, está a terminar o seu mandato
Economista de profissão, Manuela Silva está a terminar o seu mandato como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), organismo da Igreja Católica para intervir nas questões sociais. Foi durante estes três anos que este organismo colocou a pobreza na agenda política, enquanto violação dos direitos humanos.

Tem defendido que a pobreza é uma violação grave dos direitos humanos. É correcto dizer que ainda falta reconhecer o direito a não se ser pobre?

Em 2007, a CNJP organizou uma conferência cujo tema era recolocar a pobreza no contexto da cidadania e direitos humanos. Teve o mérito de mobilizar pessoas e preparar uma petição à Assembleia da República [AR] que reconhecesse a pobreza como violação de direitos humanos.

E que foi votada em Julho.

Sim. O texto da resolução ainda é "soft". Porque a AR reconhece que a pobreza configura uma situação de violação de direitos humanos. Gostaríamos que se fosse mais longe, reconhecendo a pobreza como violação de direitos humanos.

No artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos já se prevê que a pessoa tem direito à saúde, bem-estar, alimentação... Isto não consagra o direito à não pobreza?

Em rigor, sim. Mas não basta uma declaração. O passo seguinte é tornar esse direito reivindicável: é necessário definir o que é pobreza, para se reconhecer a fronteira que separa pobres de não pobres. Isso foi consagrado na resolução da AR. Outro passo é colocar a pobreza na agenda, de maneira que, ao discutir políticas, se possa ter em conta os efeitos na erradicação ou agravamento da pobreza.

Dando cumprimento à resolução, o Governo tem obrigação de definir o limiar oficial de pobreza e criar mecanismos de observação. E deve dar contas da maneira como lida com a questão, que resultados obtém no combate à pobreza e na sua erradicação - é de erradicação da pobreza que se deve falar.

Essa é uma das conclusões da Audição "Dar voz aos pobres": "Erradicar a pobreza em Portugal num horizonte temporal tão curto quanto possível." Qualquer Governo dos últimos 30 anos subscreveria tal objectivo. Mas as medidas não deram resultados...

Não é bem assim. Há ainda um grande défice em colocar a pobreza na agenda política. Discutiu-se o orçamento para 2009: por onde é que passaram os grandes debates? Por saber se a taxa de crescimento económico era mais ou menos umas décimas; ou pela discussão do défice. Tudo metas que são louváveis. Mas não ouvi ninguém discutir qual era a redução da incidência da pobreza. E não é só este Governo... Encontrou algum objectivo que dissesse "vamos reduzir a pobreza para metade"?

O Plano Nacional de Acção para a Inclusão [PNAI], em 2001, estabelecia como meta a erradicação da pobreza infantil até 2010. O de 2006 já não define metas. Não faltam objectivos concretos?

Há alguma ineficiência nas políticas sociais. O PNAI, que deveria ser um instrumento-chave no combate e na erradicação da pobreza, apresenta várias deficiências na fundamentação, na análise do problema e um grande défice de objectivos concretos e instrumentos adequados.

Falta um partido para dar voz aos pobres?...

Não é disso que se trata. A pobreza é uma realidade complexa e com muitos rostos. Seria importante dar oportunidade aos pobres de participarem - nas autarquias, nos vários partidos...

Mas há outros aspectos: as pessoas que se encontram em escassez alimentar, luta pela sobrevivência, habitação precária, falta de recursos para tratar da saúde, não têm muita disponibilidade para a sua participação cívica e democrática. Não é demais sublinhar que a pobreza afecta os pobres, mas também a qualidade da democracia.

Que papel fica para a sociedade civil?

A erradicação da pobreza devia ser um ponto obrigatório da agenda dessas redes sociais. A Igreja tem uma tradição de instituições que se têm ocupado da prestação de cuidados aos mais pobres. É chegada a hora de integrar a dimensão de que a pobreza é uma violação de direitos humanos.

Há necessidade de as organizações se assumirem como provedores dos empobrecidos, dando voz aos pobres nas instituições e fazendo-se eco dos pobres junto dos poderes públicos. Isto pode representar uma revolução no nosso país.

Então o que fazem neste momento? Simplesmente tratam?

Pior que isso: reproduzem formas assistencialistas, necessárias, mas nunca deveriam perder de vista a preocupação de dotar os empobrecidos de capacidade de autonomia.

Há quatro anos, escreveu um texto defendendo um fundo de emergência social para combater a pobreza. Essa ideia ainda é válida?

Cada vez mais, porque a situação tende a agravar-se com a crise, que já não é só financeira. São necessárias medidas que venham ao encontro das novas situações. Precisamos de recursos não só para distribuir, mas para reforçar a capacidade de resposta às necessidades sociais e colectivas.

Nesse texto, falava dos espectáculos como fonte - e é aceitável. Atrevia-me a juntar outra: as grandes fortunas feitas à custa de especulação financeira. As sociedades estão pagando a factura e talvez se pudesse recuperar alguns rendimentos.

As grandes fortunas agora estão também em crise...

A crise das grandes fortunas é mais suportável que a dos mais pobres.

Mas como é que seriam taxadas essas grandes fortunas?

É uma questão técnica. Talvez começássemos pelos salários dos gestores e administradores de grandes empresas... O que se passa nas remunerações de administradores e quadros superiores é um verdadeiro escândalo. E não só em termos éticos, é uma situação perigosa em termos de modelo social: cria expectativas em espiral, que não vão poder ser alcançadas.

Há complacência para com fraudes dos ricos

Há uma certa opinião pública que é mais complacente com as fraudes dos ricos do que com os abusos dos pobres, diz Manuela Silva. A economista avalia positivamente o Complemento Solidário para Idosos e o Rendimento Social de Inserção.

Falta eficácia à política redistributiva?

A política redistributiva pode analisar-se em várias dimensões: a política fiscal - haveria ainda muito a fazer, no que se refere à tributação das grandes fortunas, por exemplo; e através das transferências sociais que têm a ver com pensões de reforma, por exemplo. O Complemento Solidário para Idosos [CSI] pode ser um instrumento para ir ao encontro de um dos rostos da pobreza: os reformados pobres.

É preferível o CSI ou o aumento das reformas?

O aumento das reformas, para que, em caso algum, uma reforma seja inferior ao limiar de pobreza. Se houver escassez de recursos, o CSI tem um aspecto positivo: o de permitir contar com a solidariedade intrafamiliar. Claro que, se há casos em que essa solidariedade familiar funciona, noutros não.

Está de acordo com os que dizem que o Rendimento Social de Inserção [RSI] cria subsidiodependência?

Estou de acordo com o malefício da subsidiodependência, mas estou de acordo com o RSI. Não temos que associar uma coisa à outra. É muito importante que o combate à pobreza [crie] condições de autonomia dos empobrecidos, vencendo o círculo apertado da pobreza. O RSI é um bom instrumento desde que devidamente administrado.

Quando há pessoas que recebem o RSI durante vários anos, não existe a inserção e há incapacidade de evitar a subsiodependência?

Todos os usos fraudulentos devem ser reprimidos, numa sociedade democrática que quer ser justa. Há uma certa opinião pública que critica facilmente os desvios das prestações destinadas aos mais pobres e que é complacente com fraudes e aproveitamentos menos correctos de riqueza por parte dos não-pobres. Para ser bem administrado, o RSI exige recursos humanos, que permitam fazer pontes com os beneficiários. Num balanço genérico, podemos atribuir grandes méritos ao RSI, nomeadamente na relação com as novas gerações, com o quebrar do ciclo geracional da pobreza. Quando é atribuído a famílias, obriga a cuidados com a educação das crianças. Isso é importante, como também os esforços que têm sido feitos de reinserção no mercado de trabalho.
Responsabilidade social

14.12.2008


Cidadãos devem ter poder sobre as empresas

Os cidadãos terão que ter uma palavra a dizer sobre as empresas. Quatrocentas famílias no mundo não podem dispor da vida de todos.

A actual crise trará de volta a ética?

Ela tornará claro que a economia se divorciou de princípios éticos, dos quais nunca se devia ter desligado. Começa a falar-se de responsabilidade social das empresas, ainda como condimento, quando deveria ser uma componente intrínseca na aferição do desempenho. A questão é saber até quando as empresas vão responder apenas ao Estado, nos compromissos fiscais, e aos accionistas, na maximização dos lucros. E se não devem responder também aos trabalhadores e à sociedade.

Está a dizer que os cidadãos devem ter poder de decisão sobre as empresas?

Exactamente. Até quando uma empresa se pode deslocalizar com o argumento da maximização dos lucros, deixando no desemprego trabalhadores que são o sustento da economia de uma região?

Como vamos fazer isso sem nivelar por baixo?...

As sociedades não devem olhar para o passado. Nem o modelo socialista soviético está no horizonte, nem este capitalismo globalizado desregulado. Temos que caminhar para um modelo que valorize a componente democrática. Hoje achamos inaceitável ter um rei dispondo de tudo. Daqui a algum tempo também não será aceitável ter donos de grandes fortunas que decidem da vida da população mundial: 400 famílias ricas têm maior poder que muitos Estados. Dar às empresas poder sobre a vida dos cidadãos é inaceitável, é, de certa maneira, uma ditadura.