21.12.08

Na primeira pessoa

in Jornal Público

Três homens que o PÚBLICO encontrou no Abrigo da Graça, em Lisboa, contam como é sair do emprego e não ter uma casa à qual regressar


Nuno, 34 anos

"Fila para o banho, fila para jantar, filas para tudo"

Até há um ano e pouco tinha uma casa alugada nos arredores de Lisboa, vivia sozinho. Era segurança - fui segurança quase toda a vida. Mas na empresa onde estava não me pagavam havia dois meses e fui-me embora. Pensava que ia ser fácil arranjar trabalho. Sempre tinha sido. Mas a verdade é que não arranjei.

O tempo foi passando, o dinheiro que tinha juntado acabou-se, inscrevi-me em tudo o que era sítio e não conseguia trabalho. As dívidas foram-se acumulando... Já não tenho nem mãe, nem pai. Tenho primos, mas uns disseram que não podiam por causa disto, outros por causa daquilo... amigos, tenho poucos. Informei-me sobre onde é que podia dormir, arranjei um sítio onde meter as minhas coisas e entreguei as chaves ao senhorio.

Não fui dormir para a rua. Sempre achei que quem dorme na rua é porque tem um problema e o meu único problema era estar sem emprego. Fui para um abrigo em Xabregas [Lisboa]. Foi um choque. Nunca tinha estado naquele mundo. Nunca tive problemas com droga, nem com álcool, nunca fiz nada de grave... e ali há de tudo.
Fiquei nesse abrigo nove meses. Pelo meio arranjei trabalho num restaurante, puseram-me na grelha. O meu objectivo era juntar dinheiro para pagar as duas rendas que é preciso avançar quando se aluga uma casa e o salário era razoável, 700 euros. Mas é difícil ter um trabalho daqueles e estar a dormir num abrigo. Uma pessoa chega cansada ao fim do dia e tem que levar com a fila para tomar banho, a fila para jantar... É filas para tudo e para mais alguma coisa. Não há silêncio. Éramos uns 250... vi coisas que nunca tinha visto na minha vida. Psicologicamente não andava nada bem. Despedi-me do restaurante porque não aguentava. Depois falaram-me do Abrigo na Graça. É mais pequeno, a primeira semana pareceu-me um sonho.

Há uns meses arranjei emprego como segurança, mas faltei três dias seguidos e despediram-me com justa causa. Faltei porque me sentia muito cansado. Não tenho médica de família e não consegui apresentar baixa. Sei que falhei. Mas não estou bem. Esta situação está-me a fazer mal. Nunca pensei que isto me ia acontecer.
Despediram-me há um mês e meio. Estou a viver com o dinheiro que juntei e tenho ajuda da Santa Casa da Misericórdia. Todos os dias vou procurar trabalho por aí. Aceito tudo, menos construção civil, porque tenho problemas de coluna. À tarde, vou à fonoteca, no Monumental, ou à videoteca, em Alcântara... mas os dias custam a passar. O Abrigo só abre às seis da tarde. Por isso é que adoro os fins-de-semana, porque abre mais cedo, às quatro, e posso estar aqui em vez de andar na rua... e então é como se estivesse em casa...

João Manuel, 49 anos

"Os salários são uma miséria"


Tenho um filho, com 25 anos, que vive em Londres, e dois netos que ainda não conheci, de três anos e um ano e meio. A minha profissão é motorista de pesados. Mas agora estou como jardineiro e chauffeur. Trabalho para uma empresa. Comecei há cinco meses. Ganho 426 euros, mais subsídio de alimentação. É muito difícil pagar uma renda com isto. É claro que gostava de ter o meu espaço, mais privacidade do que a que tenho aqui no Abrigo da Graça. O que mais me custa é as pessoas que ressonam imenso.

Há uns anos emigrei para o Norte da Irlanda e estive lá vários anos, trabalhava num matadouro. Mas as coisas correram mal... prefiro não falar nisso. Quando regressei a Portugal não tinha trabalho. Havia alguns problemas familiares e não sou pessoa de ir bater às portas para me darem a mão. Até porque dão a mão, mas logo a seguir estão-nos a dar na cara. Por isso, comecei a dormir na rua, em casa de amigos, debaixo da ponte, onde calhava.

Depois, arranjei um trabalho como motorista internacional. Dormia no camião, nas instalações do parque automóvel, às vezes alugava um quarto ou assim para descansar... Mas já não tinha 30 anos, já não tinha idade para aquilo. Consegui uma vaga aqui no Abrigo da Graça. E agora, estou a aprender esta profissão de jardinagem: plantar árvores de grande porte, arrancar raízes... estou a gostar. Trabalho numa empresa que tem a concessão da Expo. Tudo o que ali está de jardinagem é nosso.

Todos os dias acordo às seis da manhã, tomo o pequeno-almoço, depois vou apanhar o [autocarro] 708 para o Parque das Nações e trabalho das oito horas da manhã até às cinco da tarde. Quando acabo, nunca venho directo para o Abrigo, gosto sempre de ir dar uma voltinha, beber um café.

As portas do Abrigo fecham às 22h30, mas podemos chegar ao pé do Pedro (o director) e dizer: 'Olha, hoje vou chegar à meia-noite', e não há problema. Precisamos é de dar conhecimento.

Há muito tempo que não consumo drogas, mas não gosto de fazer planos. Quando faço saem-me sempre furados. Mas não queria acabar os meus dias aqui. Queria ter uma casa. E, se possível, encontrar uma mulher. Se formos dois a pagar a renda já é mais fácil. Assim, sozinho, e com as rendas tão altas, acho difícil suportar as despesas, a alimentação e ter uma vida. Os salários em Portugal são uma miséria.

Rodrigo, 46 anos

"Ter uma casa? Não penso nisso"

Sou soldador de construção naval, mas também joguei [futebol] no Carcavelos e no Estoril Praia... podia ter sido uma vedeta. Era muito habilidoso. Mas meti-me na má vida.

Morei 40 anos com o meu pai. Nunca casei. Quando ele morreu, em 2000, tive que abandonar a casa porque não me dava com a minha madrasta. Custou-me um bocado grande entrar neste esquema [dos centros de acolhimento], porque há de tudo, pessoas com cadastro, tudo. Eu? Eu nunca passei por uma esquadra...

Como soldador podia emigrar. Mas fui toxicodependente. Há anos que tomo metadona, o que também cria dependência, e para emigrar tinha que estar a fazer o desmame e aquilo é uma coisa complicada... Por isso fui trabalhar como jardineiro para uma multinacional. Trabalhei lá seis anos e vivia no Abrigo. O salário não dava para alugar uma casa, mas dava para ir juntando. Quando me passaram a efectivo comecei a comprar as minhas coisas, televisão, Playstation - a Playstation foi no ano passado com o subsídio de férias, foram 30 contos pela consola, logo assim, a pronto. Depois aluguei um quarto a uma viúva e saí do centro. Ganhava 426 euros, mais 5,80 euros de alimentação e ainda tinha que fazer descontos para caixa. Pagava 35 contos do quarto [155 euros].

Em Setembro fui despedido. Deram-me uma indemnização pelos seis anos que lá estive e passaram--me a carta para o desemprego. Lá para Janeiro vou mexer-me para arranjar trabalho. Tenho que manter o quarto. Mas agora estou de férias. Ter uma casa? Não penso nisso. E continuo a vir aqui [ao Abrigo] buscar o jantar. Tem que ser. Depois de pagar o quarto e o passe fico com 40 contos para viver. Você vivia com 40 contos?
Nota: "Nuno" e "Rodrigo" não quiseram ser identificados pelo verdadeiro nome.