21.12.08

A nova geração de alcoólicos tem 20, 30 anos

Catarina Gomes, in Jornal Público

Jovens estão a beber mais cedo bebidas cada vez mais poderosas. Às consultas começam a chegar casos de cirrose hepática nestas idades


O padrão de consumo de álcool mudou: nos últimos anos começaram a chegar às consultas da especialidade doentes alcoólicos na casa dos 20 a 30 anos, quando costumavam andar pelos 40 a 50 anos, referem especialistas contactados pelo PÚBLICO. Iniciações ao consumo cada vez mais precoces e ingestão de bebidas de alto teor alcoólico em pouco tempo contribuem para a antecipação do problema.

"O doente mais tradicional era aquele que começava a beber vinho aos 12 anos e aos 40 a 50 anos adoecia", refere Célia Franco, médica responsável pelo serviço de adições do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra. "Agora começam a beber aos 14-15 anos mas consomem bebidas muito graduadas", fazendo binge drinking, um termo inglês que a Organização Mundial de Saúde descreve como a ingestão excessiva de quatro ou cinco bebidas de uma vez. Resultado? "Adoecem aos 20 a 30 anos com alterações graves do comportamento, agressividade e com doenças psicóticas", resume a médica.

O vinho perdeu popularidade nestas faixas etárias, face à cerveja e a bebidas destiladas como a vodka, o uísque ou os shots (pequenas bebidas com alto teor alcoólico que se bebem de um golo). São hábitos de consumo cujo objectivo é "a alteração de consciência", explica Célia Franco. "Adoecem mais rapidamente porque as quantidades ingeridas em pouco tempo são maiores e os danos mais graves", acrescenta.

Sair à noite é igual a beber

Rui Tato Marinho, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado, fala de casos de cirrose hepática aos 30 anos, "alcoólicos puros" que bebem uma garrafa de uísque por noite. Está provado que o risco de dependência aumenta quase 50 por cento se as bebedeiras começarem aos 13 anos, alerta.

"Não tem graça sair sem beber", ouve a médica Fátima Ismail da boca de alguns jovens. "Se eu não beber sou o único que está sério. Fico à parte do grupo." A coordenadora da consulta de alcoologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, fala de alcoolizações aos 12 e 13 anos - "a partir dos 25 a 27 anos já há pessoas na consulta". Estes jovens alcoólicos chegam-lhe com "alterações de comportamento, pânico, convulsões, quadros depressivos". Em comum têm o facto de surgirem "sem profissões estáveis, sem família constituída".

Fátima Ismail teme que o número de doentes alcoólicos continue a aumentar, porque "as gerações mais novas bebem mais que as gerações anteriores" e esse consumo é muitas vezes a porta de entrada para a mistura com o haxixe ou outras substâncias psicotrópicas. Por outro lado, "há uma tendência para aumentar nas mulheres", que não toleram tanto o álcool, nota a médica. "Com menos quantidades de álcool atingem alcoolemias mais elevadas" e os efeitos tóxicos são mais graves.

Morte aos 29 anos

Laura Leça, directora do Centro Regional de Alcoologia do Norte, conta que os jovens que os procuram a pedir a ajuda chegam por regra "quando a situação já está avançada". A médica - que recebe muitos na casa dos 20 e assistiu mesmo a um caso de morte por cirrose hepática aos 29 anos - alerta para consumos cada vez mais precoces, "em que as próprias famílias não resistem à pressão de pré-adolescentes que já insistem em ter as suas festas fora de casa".

O diagnóstico está traçado, mas a sociedade não parece estar alertada para o problema, concordam os especialistas. "Os pais têm que ser alertados", sublinha Célia Franco, apontando para "a permissividade com que os pais deixam sair os filhos e embriagarem-se".

A médica diz que está provado que o aumento do preço das bebidas e da idade mínima legal são eficazes na diminuição do consumo e lembra que, legalmente, a venda de álcool é proibida a menores de 16 anos, mas "não há qualquer controlo na venda em supermercados", por exemplo.

Laura Leça diz mesmo que é urgente subir a idade mínima dos 16 para os 18 anos, notando que naquelas idades "não há maturidade do fígado para metabolizar o álcool". E lembra o tempo que se demorou a tomar medidas contra o tabaco, quando a evidência científica há muito alertava para os riscos para a saúde.

Bebidas verdes

Vodka com chá verde, licor com frutas antioxidantes, cerveja que mistura água natural, guaraná e extracto de açafrão, ou enriquecida com vitamina B (supostamente destinada a impedir a ressaca) ou com sais minerais, embalagens 100 por cento recicláveis e rótulos de papel de comércio justo. As estratégias de marketing de bebidas alcoólicas estão em constante mudança e têm um objectivo primordial: associarem--se a estilos de vida saudáveis e preocupações ambientais, diz o European Centre for Monitoring Alcohol Marketing (EUCAM), um centro de monitorização com sede na Holanda, num dos seus últimos relatórios deste ano.

Bebidas rosa

Cerveja rosé ou com sabor a maçã, limão, lima e framboesa, garrafas mais pequenas, packs com cinco a dez em vez de seis ou 12, marcas que criam embalagens com uma pequena pega que imita uma malinha de mão de senhora. São algumas das novidades nesta área que pretendem apelar ao sexo feminino, diz o EUCAM. A ideia destas campanhas, assumem os anunciantes, é, no caso da cerveja, despi-la das ideias que a tornam menos atractiva para as mulheres: o cheiro, o sabor e a ideia de que engorda. Os anúncios saem em revistas femininas; parte dos lucros reverte para campanhas como as de rastreio do cancro da mama.

Bebidas com energia

As bebidas energéticas (normalmente com cafeína) tiveram o seu boom na década de 1990. A sua mistura com álcool nos últimos anos fez nascer novas marcas de bebidas energéticas alcoólicas, em que se misturam, por exemplo, com vodka e lima. O EUCAM realça o perigo de o efeito estimulante destas bebidas camuflar o nível de intoxicação pelo álcool. A publicidade está centrada na Internet e estas bebidas são muitas vezes oferecidas em festas e outros eventos; as embalagens são coloridas e os preços baixos. A mensagem veiculada centra-se no facto de, supostamente, ajudarem os jovens a ficar acordados e activos toda a noite. C.G.

a Há algumas décadas havia uma clara distinção entre hábitos de consumo de álcool nos países do Norte e do Sul da Europa: nos primeiros bebia-se sobretudo ao fim-de-semana e em grandes quantidades; nos países mediterrânicos, o consumo era mais centrado no vinho e era feito socialmente às refeições.

Hoje, entre os jovens, estas diferenças já quase não se notam, explica ao PÚBLICO Ruth Ruiz, membro da European Alcohol Policy Alliance (Eurocare), que junta cerca de 50 organizações não governamentais e associações em 20 países europeus com projectos na área da prevenção do consumo de álcool.

Hoje pode falar-se daquilo que Ruth Ruiz designa como "uma globalização das tendências na bebida". Os jovens bebem da mesma forma na Dinamarca e no Reino Unido, em Espanha ou na Itália. A primeira experiência com o álcool acontece, em média, aos 12,5 anos, e a primeira embriaguez aos 14, refere. A cerveja é a bebida mais consumida, seguida das espirituosas e das alcopops (bebidas alcoólicas açucaradas, com sabor a fruta e com uma percentagem de álcool que pode variar entre os quatro e seis por cento). Só depois vem o vinho.

"Os alcopops são uma forma de iniciação à bebida, os sabores são doces", o que resulta mais nas raparigas, que estão a beber cada vez mais. "O consumo de álcool nos rapazes é alto mas está mais estável do que nas raparigas, onde era baixo e está a subir mais", refere Ruth Ruiz.

O patrocínio de eventos musicais e desportivos também ajuda a passar "uma imagem positiva, glamorosa e divertida do álcool", alerta a responsável. Por outro lado, muita da regulamentação em torno da publicidade ao álcool dirigida a menores está centrada nos media tradicionais, nomeadamente a televisão, quando para este público as empresas de bebidas usam cada vez mais "os novos media", como a Internet.
As bebidas consumidas têm altos teores de álcool, o que significa que "há pessoas mais novas a buscar tratamento". No Reino Unido - tal como em Portugal - há relatos de médicos que encontram jovens com cirrose na casa dos 30 anos, quando isso acontecia por volta dos 40-45 anos.

Receitas para resolver o problema? Está provado que o aumento do preço das bebidas, especialmente nestas idades, é dos meios mais eficazes para diminuir o consumo, até porque se constata que, em comparação com 1980, o álcool custa hoje menos 69 por cento tendo em conta diferentes indicadores de custo de vida comparativos. "A existência de uma idade legal mínima de consumo também é importante mas tem que ser imposta", com fiscalizações às lojas para se ter a certeza de que não vendem a menores, refere. C.G.

Oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um minuto para a meia-
-noite. É hora de festejar. Francisco tem oficialmente 16 anos e diz, de charuto na boca, que "agora vai mudar tudo". A partir de agora ele "vai poder beber, legalmente", e "vai poder entrar nas discotecas, legalmente", completam os quatro amigos que o acompanham nos charutos e no festejo simultâneo do aniversário e do fim das aulas, quinta-feira à noite, em Lisboa.

Não que a idade mínima legal tenha até agora sido um impedimento para os quatro amigos, enfatizam com ar orgulhoso, no meio de um aglomerado de jovens que quase invadem a estrada, em frente ao café Boticas, nas ruas do bairro de Santos.

Para comprar bebidas é só ir ao supermercado ou a um café. Sai barato e nunca lhes perguntam a idade, quer quando compram "litrosas" (garrafas de cerveja de litro) ou bebidas como aquela garrafa de moscatel que vão bebericando entre baforadas. Afinal, eles consideram-se "rapazes ajuizados". Um deles conta mesmo que apanhou "a primeira bebedeira dois meses antes de fazer 16 anos".

É preciso ter connects

Bernardo foi mais precoce, embebedou-se aos 12 anos, "mas foi diferente porque estava com o meu pai", que trabalha com vinhos, é engenheiro agrónomo. Estudantes de colégios privados, no topo dos rankings, gabam-se das bebedeiras como das médias nas escolas - 15, 16, 17 valores - e falam das suas supostas capacidades académicas superiores. "Eu tenho uma capacidade de oratória superior à média", "quero ir para medicina, vou ser um oncologista do caraças", "eu vou ser primeiro-ministro".
Bernardo tem 15 anos e entra sem problemas em discotecas. Às vezes, dependendo dos sítios, é um pouco mais complicado, mas há sempre formas de dar a volta. O que é preciso "é ter connects". Cunhas? "Não, connects", reforça o adolescente.
"No Garage [discoteca] só me deixavam entrar porque tenho grande influência lá dentro", diz. Depois, "somos sociais, conhecemos pessoas", falando neste caso de raparigas, outra forma de entrar em discotecas abaixo da idade mínima legal. "Nunca me pedem o Bilhete de Identidade se entrar com meninas."

As raparigas, essas sim, podem entrar em discotecas "com dez anos", com os saltos altos e a maquilhagem que, à noite, as envelhecem uns anos. Um dos jovens, Martim, diz que ficou revoltado quando soube que "a Miss ABS [discoteca] tinha 14 anos". "Eu não admito. A idade legal são os 16 anos. Aos 15 anos chegaram a não me deixar entrar porque não tinha contactos. Elas entram e são privilegiadas", junta Martim.
Nuno, nome fictício, também tem opinião a dar sobre o tema. Com uma idade "por volta dos 16 anos", pensa que "a cultura portuguesa" leva os jovens ao álcool "muito cedo". Como é rapaz "é natural", mas há limites. Já "às raparigas que bebem de mais fica-lhes mal", incorrem num "acto de labreguice".

"As raparigas têm tanto direito de se divertirem como os rapazes", reivindica Madalena, adolescente de 16 anos da Escola Secundária Maria Amália, em Lisboa. E, reconhece, cabelo louro escorrido e ar garoto, é tudo mais fácil para elas.

Começou a ir a discotecas aos 13, 14 anos. "Nunca me pediram o Bilhete de Identidade". Para os porteiros, diz, o critério de entrada, mais do que a idade, passa por estar bem vestida, ter bom aspecto. "A malta mais pequena", como se refere aos jovens com 12 anos, também entra, mas só "se conhecerem pessoal ou se tiverem guest [o nome na lista de convidados]". Madalena não acha mal. Para "a malta pequena, não há idade para a pessoa se começar a divertir".

O vinho está a perder popularidade nas faixas etárias mais jovens, face à cerveja e a bebidas destiladas como a vodka, o uísque ou os shots. São hábitos de consumo cujo objectivo primordial é "a alteração de consciência", segundo uma médica especialista.

12,5
Na Europa, a primeira experiência com álcool dá-se, em média, aos 12,5 anos. A primeira embriaguez acontece aos 14