29.12.08

Redimentos prejudicam reagrupamento familiar dos imigrantes

Inês Cardoso, César Santos, in Jornal de Notícias

Quanto vale um contrato de trabalho para um imigrante? Para começar, a hipótese de residir legalmente em Portugal. Mas quando tem família no país de origem e quer trazê-la para junto de si, pode valer mais do que isso. Fazer prova de meios de subsistência é uma das condições para o reagrupamento familiar.

E muitos imigrantes vêem esse pedido recusado por uma fatia substancial dos seus rendimentos reais não ser declarada pelos patrões.

Os meios de subsistência estão definidos na portaria 1563/2007, publicada em Dezembro do ano passado. Têm como base o salário mínimo e vão crescendo à medida que aumenta o agregado familiar (ver ficha). A associação Solidariedade Imigrante assegura que tem dado apoio a muitos imigrantes que têm rendimentos suficientes, mas não declarados pelas entidades patronais.

"Não é um problema da lei, mas de obstáculos que surgem na prática porque os patrões não declaram aquilo que pagam", acusa Timóteo Macedo, dirigente associativo. Reclamando uma atitude mais interventiva da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), salienta que os imigrantes têm, muitas vezes, medo de denunciar. "Frequentemente até desconhecem os seus direitos e não sabem que, tendo contratos com valores inferiores aos reais, são prejudicados em situação de doença ou reforma".

Questionado pelo JN, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) não esclarece quantos são os pedidos de reagrupamento indeferidos no último ano. Destaca, pela positiva, os cerca de 20 mil casos deferidos desde que entrou em vigor a nova Lei de Imigração (em Agosto passado).

Depois de recordar que "os empregadores também estão sujeitos ao cumprimento da lei", o SEF acaba por considerar que também as associações de imigrantes podem colaborar no processo: "As associações têm canais abertos com o SEF, possibilitando-lhes assim a comunicação de casos concretos de violação da lei".

Quanto à lei em vigor, o Serviço de Estrangeiros sustenta ser, "comparativamente à legislação de outros países da União Europeia, uma das mais abrangentes no que respeita ao instituto do reagrupamento familiar". Argumento que Timóteo Macedo não rebate, já que o problema se centra em questões práticas na hora de a aplicar.

O SEF recorda ainda, "como prova do bom funcionamento" dos princípios legais, o segundo lugar atribuído a Portugal, entre os 27 Estados-Membros, num estudo que avaliou a integração de imigrantes, "tendo como um dos critérios o reagrupamento".

Curiosamente, a vizinha Espanha aprovou na sexta-feira passada um relatório sobre a reforma da Lei da Imigração que prevê limitar o reagrupamento dos ascendentes de imigrantes e agrava as sanções por infracções neste domínio. Segundo a agência Lusa, os pais só poderão juntar-se a imigrantes quando tiverem mais de 65 anos, "para evitar o seu acesso ao mercado laboral".

A par de medidas mais restritivas na entrada em Espanha - que visam, segundo o Governo, aumentar a luta contra a imigração ilegal -, o anteprojecto que agora vai ser submetido a debate prevê o endurecimento das sanções para empresários que utilizam imigrantes em situação irregular.

Quessana Nante, Guiné
Durante os quatro anos em que trabalhou num aviário em Vagos, Aveiro, Quessana sentiu-se de volta aos tempos da escravatura pura e dura. Assegura que em todo esse tempo não teve uma única folga e trabalhava 12 horas por dia, sem receber um tostão por tantas horas extraordinárias. Nasceu-lhe uma filha, há dois anos, e nem um dia para vir registá-la junto da Embaixada da Guiné lhe deram. A mulher, que trabalhava no mesmo local a embalar ovos, recebeu a notícia da morte da mãe e nem assim teve direito a uma pausa.

Quessana Nante, de 52 anos, não se queixa da falta de contrato. Tinha, sim. Recebia o que lá estava declarado, sim. O trabalho é que ia muito para além do acordado. Para justificar a razão de nunca ter denunciado a empresa, conta que era "muito amigo" do irmão da patroa. "Quando eu me queixava, ele dizia que ia falar com ela e tentar resolver. Só que isso nunca aconteceu", lamenta.

Em Janeiro passado, cansou-se de esperar e mudou-se para Lisboa, onde trabalha na construção civil. Declara o ordenado mínimo, mas recebe mensalmente valores que oscilam entre 650 e 780 euros, consoante as horas efectivas de trabalho.

A 26 de Novembro entregou o pedido para trazer para junto de si três filhos que estão em Bissau. Ainda aguarda resposta do Serviço de Estrangeiros, mas pelos valores declarados teme o indeferimento e está preparado para ter de insistir. Com idades entre os 11 e 15 anos, os três filhos (dois de uma mulher já falecida) vivem com o sogro. No ano passado esteve com eles, de férias, e ficaram a conhecer a irmã mais nova. Só ainda não conhecem o novo rebento, um rapaz nascido a 24 de Outubro.

Ivete Varela, Cabo Verde
Conta a sua história com respostas curtas, mas directas. Repete o número diário de horas de trabalho, perante a incredulidade de quem ouve, e nada lhe parece custar. Mas quando confessa que não vê os filhos há quatro anos, tantos como os que leva fora do seu arquipélago, Ivete Varela não consegue conter uma lágrima que limpa discretamente.

Fala constantemente com os dois filhos, de 13 e 15 anos. "Todos os dias me pedem para vir para Portugal". No passado dia 4 de Junho formalizou o pedido nesse sentido, por já dispor de autorização de residência. Em Novembro recebeu a resposta negativa, por ter baixos rendimentos na declaração de IRS do ano passado.

Ivete vai decompondo as parcelas das sombrias contas. Trabalha em limpezas, em três empresas diferentes. Das 6 às 9 da manhã declara quanto recebe: aproximadamente 150 euros. Um segundo "turno", o principal, vai das 9 às 17 horas. Mais uma vez tem contrato, mas nele estão inscritos 250 euros, apesar de receber 425. Como se a situação fosse piorando com o cair do dia, no último emprego é ainda pior. Trabalha das 18 às 20 horas e pura e simplesmente não tem contrato.

O marido também vive e trabalha em Lisboa, mas perante as autoridades não existe. "Esteve detido e por isso não lhe dão autorização de residência", afirma. Por isso o pedido de reagrupamento ignora forçosamente que no agregado há duas fontes de rendimento.

Os filhos vivem com a sua mãe e Ivete não duvida que estão bem entregues, mas quer "recuperá-los" depois de quatro anos de ausência. A voz sufocada denuncia o aperto no peito. "Tenho muitas saudades, mesmo".

Simão Lopes, Cabo Verde
Quanto maior for a família, maior a dificuldade em a reunir. Simão Lopes aprendeu a lição à custa da sua própria história. Depois de um ano em que se arrastou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras o pedido para trazer de Cabo Verde a mulher e quatro filhos, no mês passado recebeu o veredicto. Os rendimentos da sua declaração de IRS em 2007, pouco mais de 7.200 euros, foram considerados insuficientes.

Há oito anos a viver em Portugal e com autorização de residência há cerca de dois, Simão trabalhou desde sempre na construção civil. A acreditar no contrato, recebe o salário mínimo. Isto se não houvesse contratos "mentirosos" ou desajustados em relação à realidade. "O que recebo varia consoante o número de horas que faço, mas por norma anda entre 600 e 700 euros", conta.

Para contornar a situação, está a tentar que amigos aceitem fazer prova dos seus rendimentos, conjugados com um termo de responsabilidade civil. "Já tenho um amigo que aceita e estou a desenvolver contactos para continuar o processo". Tem contado com o apoio da associação Solidariedade Imigrante, onde entregou o requerimento e onde se desloca regularmente para definir os passos a seguir.

Em Cabo Verde, os quatro filhos, com idades entre 8 e 17 anos, estudam e a mulher está a trabalhar. Acredita que, chegando a Lisboa, conseguirá facilmente inseri-la no mercado de trabalho.

Por enquanto Simão Lopes vive num quarto alugado. É a opção mais barata enquanto a única companheira é a solidão. "Logo que consiga trazê-los preparo uma casa de família", garante com um sorriso. "Espero que seja para breve".

Evani Bispo, Brasil
A contradição explica-se em poucas palavras: Evani e o filho estão a viver com o marido em Portugal, mas não conseguiram convencer o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que têm condições materiais para subsistir. Ou seja, a situação de facto não é reconhecida à luz da lei.

Embora esteja há quase cinco anos no país, Evani continua na sombra da ilegalidade. O percurso é idêntico ao de muitos conterrâneos. Entrou com visto de turismo e em menos de duas semanas estava a trabalhar. Começou como empregada interna, hoje faz limpezas em residências. É fácil somar dois mais dois e concluir que Evani é paga à hora, sem contratos nem descontos.

O marido teve mais sorte. Chegou há apenas dois anos com o filho, que hoje tem 17. Em 12 dias estava a trabalhar numa empresa de lavagem de veículos e sete meses depois tinha um contrato na mão. Só que há um "mas" nesta história. Apesar do marido ganhar 700 euros, o contrato diz que são 450. Quando, no início deste mês, a família recebeu a resposta ao pedido para lhes ser reconhecido o reagrupamento familiar, foi confrontada com a palavra indeferimento. Os rendimentos não atingiam os patamares mínimos.

A pergunta é quase automática, mas a resposta surge com a mesma rapidez. Tentaram rectificar o contrato, actualizar os valores em causa junto da empresa? "Não", afirma Evani Bispo, sem conseguir esclarecer totalmente porquê.

No SEF informaram que havia forma de fazer prova das condições de subsistência, nomeadamente partilhando a renda da casa com alguém. "Já conseguimos isso e entregámos os documentos, portanto os contactos continuam". Tal como a esperança de chegar a bom porto.