21.12.08

Telhados rotos à beira-Douro

in Correio da Manhã

Em Baião, a pobreza não vive na rua. Esconde-se dentro das habitações sem casa de banho e saneamento básico. Vê-se no olhar dos pais que os filhos esqueceram, das mulheres vítimas de violência, das doenças que mataram alguém querido. A região do Vale do Tâmega é a mais pobre da Europa mas tem o que comer – couves, batatas e ervilhas. E pode pedir fiado – todos pedem

O calendário de 2006 pende torto da parede enegrecida da cozinha onde a luz não entra porque não há janelas. Lá fora, as panelas onde se cozinharam outras épocas servem de vaso para plantas pouco verdes. Na casa de Branca o tempo não se atrasou apenas dois anos, como faz crer o almanaque. Se acaso passou por ali a evolução, por aquela varanda privilegiada para o Douro, fez-se rogada a entrar. A casa é escura e tem de ter a luz acesa apesar de pouco passar das 13h00 – é a dona quem nos avisa da penumbra, uma constatação a que uns vivos olhos azuis, por de mais parecidos com os do gato que nos mira do telhado, estão habituados. É Dezembro e não vemos sinais de Natal. Estamos em Baião, referenciado como o concelho do distrito do Porto onde o nível de pobreza é mais grave, por um estudo da Rede Europeia Anti-Pobreza. A região do Vale do Tâmega, onde se insere, será mesmo a mais pobre da grande família Europa.

Uma escassez que, apesar de fazer jus à definição, não se desvenda em esmolas atiradas a sem-abrigo como nas cidades. Até porque ali não faltam tectos, por muito enfezados que sejam, por poucas condições que tenha quem por baixo deles vive. Uma pobreza envergonhada que se esconde em casa mas sobrevive do que a terra vai dando quando a sorte está de feição, dos fiados da mercearia onde também se levantam as pensões, de rendimentos difíceis de atribuir por quem os atribui, de parcas reformas que se gastam em farmácias plantadas no cimo das encostas.

O riso de Branca é tão solto como a roupa que balança ao vento, filho de um Inverno duro de roer. Mesmo quando se faz ouvir debaixo dos buracos que dentro de casa permitem sentir a céu aberto o princípio da tarde. 'É para arrefecer', diz-nos tão séria que ficamos sem saber se é ironia. Já foi preciso, quando uma lareira era a senhora da casa. Foi--se a chaminé, ficaram os orifícios que deixam passar o frio. O marido também se foi, fintado pelo coração. As reformas cozinhadas do casal dão para pouco. 'Coitadinha de mim, chego ao fim do mês sem nada'. Depois de pagar as refeições ao Centro Social de Santa Cruz do Douro, que diariamente entrega as marmitas na casa dos utentes. 'E de trazer os medicamentos' que a saúde exige para se aguentar firme. Não lhe faltam os Nenucos espalhados com esmero, falta uma casa de banho em condições. A ‘divisão’ descobre-se com esforço, ao fundo de umas escadas íngremes, artimanha que não se compadece com o gelo nocturno. 'Tenho um bacio no quarto para quando me dá a vontade não ter de ir à rua'.

Fernanda tem fado igual. O da pobreza e da falta de casa de banho dentro da habitação miúda. A falta de água, também. Vem do poço, fardo que todos carregam em garrafões. Pode faltar muito mas não faltam as couves, batatas e tangerinas que dançam lado-a-lado com a roupa no estendal. As vizinhas partilham o que foi dito e a viuvez. 'O meu homem foi embora há 11 anos, foi um cancro que o levou'. O mesmo mal levou-lhe dois dos quatro filhos – a perda mais recente tem meses e leva a idosa de 78 anos às lágrimas. Já a crise que o País enfrenta é 'coisa lá de longe'. À porta dela bateu desde cedo, quando a morte da mãe, tinha ela sete anos, a transformou em responsável pela casa, pelo pai e os seis irmãos. 'Tenho muita pena de não ter aprendido a ler, não pude ir à escola'. A vida nunca facilitou o caminho. 'Falta-me tudo, só não me falta este rio', diz apontado o Douro. A falta de uma casa de banho – é um buraco – é o que causa mais desgosto. 'Se me resolvessem isso já não sofria tanto'.

O sofrimento de José é outro mas as histórias dos dois encontram mágoas semelhantes. A maior, que o faz levar o lenço aos olhos, é o afastamento dos filhos. 'Gostava de morar com eles mas eles não querem, raramente vêm aqui, eu é que lhes telefono. Mais valia a minha mulher cá do que eles'. Faz dois anos que um cancro consumiu a vida à companheira. Com ela levou, diz , 'a alegria que tornava os dias menos duros'. A casa, 'um barraquito', foi o idoso que construiu com as mãos calejadas que preparam agora o jantar para um. 'Sopa ou massa, é o mais barato. Recebo 90 contos mas eles vão com os 10 comprimidos que tomo e a luz para poder ver'.

Tralhão usa uma lareira feita de paus no chão para alumiar a noite. O fumo é tanto que se vê de longe, antes de se conseguir chegar ao sítio onde mora sozinho e onde espera ver regressar a Xerona que desapareceu há dias sem ele dar por nada. 'Era a gata mais velha, a minha companhia'. Ficaram as mais novas e os garrafões de vinho a amparar-lhe a solidão. 'Se não tivesse os copitos não andava animado, mais valia porem-me um colete e levarem-me daqui', desabafa, enquanto mexe a panelita onde coze o caldo verde sem chouriço, receita de tempos antigos que aprendeu com as mulheres com quem partilhou a vida.

'Uma morreu, a outra mora ali ao fundo', conta, apontando para a casa que se segue. No chão do quarto escorrem gotas grossas – e não está a chover. São fruto da mesma humidade que se alapou às paredes e que faz gelar os ossos.

'Passo tanto frio que depois de jantar enfio-me logo na cama todo tapado'. O ex-servente de pedreiro tem água 'da Câmara há uns meses'. Mas tanto tempo esteve sem ela que se habituou a tomar banho no Centro Social de Santa Cruz do Douro, todas as terças e quintas. A reforma é esticada ao limite. 'A sorte é que o garrafão só custa três euros', brinca, o sorriso a iluminar-lhe a fronte que a fuligem onde se aquece enegreceu.

Margarida garante-nos que nunca sorri. E aqui o advérbio sublinha o drama visível no lixo que se acumula à entrada da casa de cimento onde mora com o marido e seis dos sete filhos. A que não vive em Baião escolheu França para fugir à 'castração' do pai que 'não a deixava namorar'. Por isso, 'ajuntou--se e abalou'. A mais nova tem três anos e está com a mãe quando as encontramos. Não lhe ouvimos a voz, antes os beijos repenicados que prega numa ninhada de cachorrinhos que nasceu há dias. Margarida segura a enxada nas mãos. Usou-a para desentupir 'a retrete que a canalha estragou'. O chão está imundo. As calças da pequenita também. O marido, Alcino, passa os dias na vinha onde o trabalho ajuda a engrossar o orçamento – soma-se ao rendimento social de inserção a que a família tem direito. 'Anda doente o meu homem', lamenta-se Margarida, ela própria a tentar curar um cancro no estômago no IPO do Porto.

'Não devia trabalhar a terra mas tenho que secar as ervilhas e as favas para lhes dar de comer'. Um dos filhos tem anemia. Mas a grande pena desta mulher de 42 anos é que não 'se agarram aos livros'. Porque, diz, 'eles até gostam de ir à escola mas não aprendem'. Três deles já não estudam. E Margarida sabe o que é a vida para quem desiste.

Já João concluiu o 12.º ano 'sem convicção'. Hoje tem pena que assim tenha sido. Desempregado desde Julho – era recepcionista numa pousada – vive com o pai Pedro, que tem bócio e uma prótese na perna , e com a avó Maria Júlia, às avessas com a bronquite asmática.

'Desde que a minha mãe morreu, há três anos, a vida tornou-se mais difícil. Dois homens sozinhos não é nada fácil, ela apoiava-nos muito.' Ficaram sem o amor da 'mulher grande' – 1,90m e 104 quilos. Era ela que dava no duro. O rendimento social ajuda-os a alimentar os dias e a tratar as mazelas.

'A vida está muito cara, os preços sobem muito. Não quero viver do rendimento mas ninguém me chama das entrevistas a que vou', lamenta o filho. Por isso, resolveu criar um projecto de turismo que vai candidatar a uma incubadora de empresas que irá surgir em Baião.

Carla, vamos chamar-lhe assim, também está desempregada. É o rosto da falta de fé e só o sorriso do filho, de 4 anos, a consegue alegrar. Tem 32 anos vividos em Baião, e habituou-se a ver 'a mãe ser pisada pelo pai' – jurou escapar a tal fado. Casou cedo para sair de casa, mas o homem era igual ao pai. 'Os copos deixavam-no violento e chegou a pôr-me fora de casa'. Incitada pela mãe, deu-lhe 'oportunidades para não ser mal falada pelas pessoas'. O marido, à semelhança de muitos homens do concelho, foi trabalhar para França, na construção civil, numa fuga ao desemprego e por lá arranjou outra família. Separaram-se há um ano mas Carla tem no dedo a aliança. 'Se as pessoas sabem que me divorciei vou ouvir bocas'. Vive do rendimento de inserção social, que lhe dá menos de 300 euros por mês. 'O pai do menino não me manda dinheiro'. Na casa velha e alugada onde moram, dorme abraçada à criança para não arrefecerem por baixo dos lençóis. E vai tentar comprar-lhe o 'jipe telecomandado que ele pediu', com os olhos a brilhar, na carta que escreveu ao Pai Natal. Carla quer fazê-lo acreditar naquilo que a vida nunca a deixou acreditar.

'É PRECISO UMA ALTERAÇÃO DE MENTALIDADE'

Dos concelhos referenciados no estudo ‘Nas Margens do Tâmega – Mercado de Trabalho, Pobreza e Exclusão, Interacções e Intervenções’ – Amarante, Baião, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Paredes, Paços de Ferreira e Penafiel – Baião é um dos três que regista um aumento do desemprego. No conce-lho, 80% dos homens emigrou e o desemprego feminino representa 70%. Tem o maior número de pensionistas face à população empregada e de beneficiários do rendimento social de inserção. O alcoolismo é notório nas freguesias mais isoladas e está associado a problemas de violência doméstica, inactividade e falta de competências parentais. Segundo o autarca de Baião, José Luís Carneiro, a região 'esteve durante muito tempo afastada dos grandes núcleos urbanos'. A educação e, por outro lado, a promoção do concelho para atrair empresas e serviços têm sido as principais apostas da Câmara, que propôs um sistema de quotas para empregar os cidadãos que estão no limite da exclusão social. Mas não é fácil a empreitada. 'É preciso uma alteração da mentalidade'. Para José Luís Carneiro, a falta de mobilidade e o desemprego são os principais entraves ao desenvolvimento de Baião.

OITO PESSOAS PARA UMA SÓ BACIA

A casa de Margarida (à dir. na foto) tem três divisões. Dois quartos, por onde se dividem os pais e seis dos sete filhos, e uma cozinha. A casa de banho, em baixo, um anexo, só tem uma sanita 'que está sempre a entupir'. O banho é no exterior, e de bacia. 'Já não pedia um palácio', diz Margarida, 'mas uma casinha em condições onde pudéssemos lavar-nos e fazer as necessidades sem ter de sair para a rua.' A filha mais nova tem três anos, o mais velho 23. 'O que comemos tiramos da terra.'