19.1.09

Nova legislação reduz protecção nos acidentes de trabalho

João Ramos de Almeida, in Jornal Público

Código do Trabalho retira ao Ministério Público o acompanhamento dos sinistrados com incapacidades até 20 por cento

O Ministério da Justiça está a preparar legislação que deixará grande parte dos acidentados de trabalho sem a protecção do Ministério Público (MP) face às companhias de seguros.

O Ministério do Trabalho refuta essa intenção, o Ministério da Justiça não a assume nem a desmente, mas o PÚBLICO confirmou a veracidade do projecto. A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) dá crédito à informação e ameaça romper o Protocolo de Mediação Laboral se a iniciativa for avante.

O projecto estabelece que, em casos de acidentes de trabalho de que resultem incapacidades inferiores a 20 por cento, as companhias de seguros passam a participá-los ao Instituto de Medicina Legal e não ao MP. O instituto realiza o exame médico que determina o grau de incapacidade e seguradora e sinistrado tentam chegar a um acordo. Caso não haja, as seguradoras "comunicam de imediato o sinistro ao tribunal".

Actualmente, as companhias têm de comunicar obrigatoriamente os sinistros ao Ministério Público. E são os serviços do MP que passam a representar o sinistrado na tentativa de conciliação com a seguradora. O MP conduz o processo e, caso siga para tribunal, patrocina a acção. A grande maioria dos casos fica pela fase de conciliação, sem ir a tribunal.

Prevê-se ainda que, conseguido o acordo entre as partes, o seu conteúdo pode ser "homologado" pelo Instituto de Segurança Social, entidade do Ministério do Trabalho que gere os regimes de segurança social. Mas esta homologação não visa amparar o sinistrado, mas verificar se o acordo está formalmente conforme a lei.
No projecto, a participação do MP apenas se verifica, por um lado, nos casos de incapacidade superior a 20 por cento - em que se mantém o regime actual - ou nos inferiores a 20 por cento em que o acordo entre as partes não seja homologado pelo ISS. Neste caso, "o Ministério Público designa data para a tentativa de conciliação".

Intenção é velha

Esta intenção não é nova e prende-se com a libertação dos tribunais das pendências processuais. Em Novembro de 2007, o Governo aprovou a resolução n.º 172/2007 em que, entre várias iniciativas, previu a "dispensa da necessidade de apresentação de uma acção judicial em matéria de acidentes de trabalho quando, após a realização dos exames médicos necessários, exista acordo entre trabalhador e empregador e decisão favorável de entidade administrativa ou equivalente". O Governo sublinhava que haveria "sempre o acesso aos tribunais em caso de conflito".

A formulação era vaga, mas a sua concretização surgiu num esboço de projecto de regulamentação do Código do Processo do Trabalho (CPT) adaptado ao novo Código do Trabalho (aprovado em Novembro passado), versão que circulou por escritórios de advogados.

A CGTP teve acesso ao documento, mas não se surpreendeu. Já na negociação do Protocolo de Mediação Laboral, assinado em Maio de 2006 por todos os parceiros sociais (CGTP incluída), a central sindical teve de impor como condição que os acidentes de trabalho ficassem de fora. E assim ficou no seu ponto 1: o sistema de mediação abrange "litígios de matéria laboral, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidentes de trabalho". Ora, o projecto não só recupera essa intenção como corrobora diversos conversas tidas entre dirigentes da CGTP e responsáveis políticos.

O PÚBLICO, por seu lado, pôde confirmar o sentido desses trabalhos preparatórios da nova legislação por parte do Ministério da Justiça. O mesmo não fez o Governo, ainda que com nuances.

O gabinete do ministro do Trabalho remeteu um peremptório e-mail do serviço de imprensa: "Uma proposta de revisão do CPT? De quem? O Ministério do Trabalho não reconhece este documento, esta 'proposta de lei de revisão do CPT', de todo!!!!". Já o Ministério da Justiça foi mais prudente: "O Ministério da Justiça não reconhece o documento em causa, uma vez que não existe qualquer proposta, projecto ou texto validado ou assumido como opção política do Governo".

A CGTP ameaça romper o Protocolo de Mediação Laboral, se o projecto for aprovado. Para Joaquim Dionísio, da comissão executiva, trata-se de "um grande favorecimento às companhias seguradoras em relação aos sinistrados do Trabalho", uma vez que os deixa "numa posição fragilizada". "Se o objectivo é retirar trabalho aos tribunais, então" - sugere-se - "que se crie um serviço autónomo do MP com as mesmas funções do sistema actual" ou outro modelo, em que os sindicatos possam ter maior intervenção. "Mas não se retire o apoio aos sinistrados", afirma.

Primeiro, deixa de haver um controlo de legalidade por parte do Ministério Público (MP), em matérias que representam direitos indisponíveis do trabalhador e que são extremamente delicadas para os sinistrados. Colocado ao lado da seguradora, isolado, o sinistrado pode concordar com compensações gravosas para si próprio.

Depois, a avaliação pelo Instituto de Medicina Legal resume-se ao grau de incapacidade e exclui a cobertura de danos morais. Desaparece do processo a avaliação da responsabilidade pelo acidente de trabalho e, consequentemente, do empregador, ainda que transferida para a seguradora. Finalmente, estabelecendo-se um limiar de 20 por cento para acordos não seguidos pelo MP, é provável que a avaliação do grau de incapacidade das baixas incapacidades tenda a ficar abaixo desse limite.
Em resumo, os sinistrados podem vir a aceitar valores mais baixos de indemnização. Formalmente, o projecto é questionável pela forma como se contorna o controlo de direitos indisponíveis.

20%
Incapacidades até 20 por cento passam a ser resolvidas directamente entre os sinistrados e seguradoras