25.2.09

caso exemplar de 12 desempregados a tentar que o Estado se mexa

João Ramos de Almeida

Inspecção do Trabalho, Segurança Social, tribunais, todos os níveis de protecção laboral contribuem para a "letra morta" das regras legais nesta situação

A Vinha o inspector-geral do Trabalho a sair de um seminário em que se elogiara a cooperação das diversas inspecções, quando foi interpelado pelo PÚBLICO. Há duas semanas que se espera por informação sobre um caso de despedimento colectivo ilegal. Foi uma denúncia de Dezembro, sem que a Autoridade para as Condições de Trabalho tivesse actuado. "Vou ver", respondeu o inspector-geral.

A realidade é sempre crua. E para os 12 trabalhadores efectivos da firma de construção de Lisboa Guerra, Gonçalves & Filhos, Lda, a sua realidade foi uma revelação. A do vazio do Estado na regulação do mercado de trabalho. Tanto a ACT, como a Segurança Social, o Tribunal de Trabalho ou o do Comércio se mostram insensíveis para lidar com o pequeno mundo dos habitantes reais.

"A lei não foi feita para nós", comenta Filipe Nunes. "Em dois dias, conseguiram que o BPN fosse tratado, mas nós estamos desde Dezembro a batalhar." E sem resultados.
Sobre a mesa do café espalham o caso (ver texto). Primeiro, a pressão para reduzir salários, a criação de uma segunda firma e o fecho da torneira, tudo seguido do anúncio sobre a hora do despedimento colectivo, sem indemnizações. E, finalmente, o escárnio do empregador - que mais valia aceitar tudo porque a justiça tarda.

Mesmo assim, ou por isso mesmo, os 12 foram fazer valer os seus direitos. Direitos de lei, porque, na prática, a lei é outra. E as vozes alteravam-se quando descreviam a sucessão de episódios para tentar que o Estado se mexesse.

No labirinto


Dirigiram-se a 10 de Dezembro à ACT. Aí, não aceitaram uma queixa anónima. Sugeriram que fosse dado um nome verdadeiro, mas pouco usado. "Digam tudo o que sabem que esteja mal", sugeriu o funcionário. A queixa escrita e assinada descreveu a falta de segurança, as irregularidades contratuais, o trabalho de imigrantes ilegais, etc. Foram dadas todas as moradas para os inspectores aparecerem de surpresa. Em vão.
Passados uns dias, interpuseram no Tribunal de Trabalho uma providência cautelar para suspender o despedimento, descrevendo a ilegalidade do processo - simulação de pré-aviso, impedimento de trabalhar e de reclamação, ausência de motivo, de negociação ou pagamento de indemnizações.

Ali tentaram o patrocínio do Ministério Público. A funcionária perguntou se a firma já tinha pedido a insolvência. Se sim, a queixa teria ser metida no Tribunal do Comércio. E, além disso, o procurador apenas podia marcar na agenda dali a mais de um mês. Tinham de pagar 50 euros por pessoa, para a mediação laboral. "Procurem um advogado, só estou aqui para esclarecer...", afirmou.

A seguir, foram à Segurança Social pedir a isenção de custas judiciais. No mesmo dia, no mesmo serviço, um dos funcionários concedeu a isenção a um dos trabalhadores, mas o outro ao lado recusou. Uma recusa com base nos rendimentos declarados no IRS de 2007, quando estava a trabalhar e apresentou declaração com a mulher. Mas em finais de 2008 era desempregado e os serviços não viam isso.

Novo passo: obter o subsídio de desemprego. Mas a Segurança Social não o concedeu, porque na carta de despedimento colectivo não estava o motivo. O "engano" reflectiu-se, não sobre o autor, mas sobre o desempregado. O subsídio só foi autorizado porque se apresentou uma cópia da providência cautelar, que legitimou o pedido. O PÚBLICO questionou o Ministério do Trabalho. Em vão.

A 15 de Janeiro passado, a empresa pediu a insolvência, com uma dívida de 98.628,60 euros. Segundo os trabalhadores, entre os credores da empresa aparece um dos sócios principais que entretanto passara a firma para o filho mais novo. Até ao pedido de insolvência, parte dos bens da empresa foi passada a dinheiro, a casa do empresário ficou à venda e algum mobiliário foi para uma vivenda do empresário no Norte. Um dos filhos, ex-sócio e que veio a constituir a segunda firma, não nega, mas afirma que "os bens da empresa encontram-se à disposição do tribunal" e que "a vida particular dos sócios ou gerentes não se confunde com a vida da empresa".

Desde aí nada mudou. Os inspectores não foram à empresa. Na ACT, explicaram que havia muitas queixas, poucos inspectores e que os casos iam para outro serviço para triagem. Foi aconselhada uma queixa-crime. Mais advogados, mais expedientes.

No Tribunal do Trabalho, foi-lhes dito que a providência cautelar - um processo com efeitos em 30 dias - não tinha avançado. Porquê? Porque não se conseguia notificar os empresários. Isso, apesar de a advogada dos trabalhadores comunicar com a empresa por fax. Ter-se-ia de pagar a um solicitador, mas teriam de estar seguros do local e da hora onde estava o empresário. E o contador a passar. A funcionária do Tribunal do Trabalho alertou-os para o risco de a providência cautelar perder o efeito, dado a insolvência da empresa se sobrepor à acção laboral.

Dias mais tarde, foi decretada a insolvência da empresa. E isso não prejudica a providência cautelar? "Sim", responderam. "Então como se faz?" Encolheram os ombros. E a queixa-crime? É no Tribunal do Trabalho. De volta lá, novo conselho para que se fale com o advogado. "É fazer um requerimento ao senhor procurador e ver se pega no caso." Foram ao Departamento de Investigação e Acção Penal. Lá deram-lhes uma folha em branco. "Façam a vossa queixa. Têm advogado? Ah... então falem com ele." Mas para o advogado, a queixa tem de especificar qual o crime, quando foi praticado, quais os bens da sociedade, com todos os pormenores...

O tempo passa. Mas não a favor dos desempregados.

É diferente a descrição feita pelo ex-sócio e ex-gerente da firma, actualmente sócio principal de uma segunda firma, Lamelas & Gonçalves, Lda, criada em Agosto de 2007.
Luís Gonçalves foi a única pessoa ligada à empresa que comentou por escrito as acusações dos trabalhadores. Não se conseguiu falar com o sócio actual. O PÚBLICO tentou falar com o advogado que estivera presente na reunião após o anúncio do despedimento colectivo. Primeiro, afirmou desconhecer se a firma era sua cliente, mais tarde disse que só falaria se fosse passada uma procuração para esse efeito.
É daquela resposta que se sintetiza a versão seguinte.

A Guerra, Gonçalves & Filhos não tinha imigrantes ilegais. Trabalhavam na empresa quatro imigrantes e totalmente legalizados. os salários não eram tão baixos: "É fácil provar que havia trabalhadores efectivos a receber mensalmente 1100 euros." "Como se pode verificar pelos recibos de vencimento de 2007 e 2008, praticamente não existiam faltas. E as que houve nem sempre eram descontadas", refere-se na carta. Aliás, "nunca houve qualquer reclamação dessas situações por parte dos trabalhadores em qualquer instância de direito". Nem foram pedidos descontos sociais a quem tirasse férias. Nunca ninguém reclamou esse facto. Luís Gonçalves nega que tenha aliciado os trabalhadores a reduzir salários. "Existiu uma reunião na empresa, na qual foi exposta a difícil situação em que a empresa se encontrava e foi dado conhecimento (...) da existência de milhares de euros por receber, de clientes." Nega-se igualmente que alguma vez tenha sido proposto uma compensação "por fora" do recibo de vencimento. Isso "seria, legalmente, impossível".

Admite que a empresa tenha atrasado o pagamento de salários, mas por atrasos dos clientes. Sobre a empresa que criou em 2007 afirma desconhecer se foram para ela passados equipamentos e contratos de obras da firma do seu pai. Nega igualmente uma ligação entre o despedimento e a mudança de morada da Guerra, Gonçalves & Filhos, formalizada em Novembro de 2008 (tal como consta do Diário da República). "Foi decidida em Abril, conforme facilmente se prova no livro de actas."

Luís Gonçalves confirma que, em Outubro de 2008, comunicaram aos trabalhadores que não conseguiam manter os salários. Confirma igualmente que, a 28 de Novembro de 2008, foi formalizado o despedimento colectivo, "devido ao facto de estarem concluídos todos os trabalhos até então em curso e não existir mais obras contratadas para realizar".

A partir daqui, Luís Gonçalves nega tudo: nunca foi pedido que prescindissem da efectividade, de direitos, das indemnizações. "Alguns empregados disseram que não tinham especial interesse em receber indemnizações, pois haviam de tornar a vida de todas as pessoas 'um inferno' e que acabariam sempre por receber." Luís Gonçalves não nega que o empregador se recusou a pagar, mas dá a entender que foram os trabalhadores que recusaram. "Segundo palavras dos próprios não seria esta esmola (indemnização) que lhes iria resolver a vida, por isso teriam muito prazer em prejudicar os gerentes." E na reunião de Novembro, "o gerente foi ameaçado de morte e insultado por vários dos trabalhadores". Nega-se que se tenha sugerido trabalho na empresa do ex-gerente. "Todos os trabalhadores reafirmaram que lhes era fácil arranjar trabalho."

50
Em euros é quanto cada queixoso tem de pagar para solicitar a mediação
laboral no tribunal

O caso dos trabalhadores da Guerra, Gonçalves & Filhos surgiu porque, como contam, os empresários quiseram reduzir os seus salários. Ao fim de um ano, os trabalhadores estavam despedidos, a empresa fechou e funciona já outra no seu lugar com o mesmo gerente da primeira.

Segue-se a versão dos trabalhadores. Os donos da empresa apresentam factos diferentes (ver texto).

A empresa era uma pequena firma familiar. Os sócios eram o pai, a mulher e os dois filhos. Criada em Janeiro de 2001, chegou a dar actividade - entre trabalhadores e subempreiteiros - a 80 pessoas, incluindo trabalhadores ilegais. Quando os estaleiros eram inspeccionados, os imigrantes tinham instruções para se esconder.
No quadro de pessoal havia, contudo, apenas 12 trabalhadores. Os ordenados eram, em média, entre os 700 e 850 euros, mas o montante variava consoante o número de faltas que lhes ia sendo imputadas falsamente em cada mês - "quando dava jeito". Os subsídios de férias e de Natal eram recebidos mensalmente, mas quando o trabalhador queria tirar férias o empregador obrigava-o a pagar à empresa os descontos sociais que já tinham sido feitos em cada mês. Esse pagamento não entrava nos recibos de vencimento.

Em 2007, os empregadores tentaram chegar a um acordo. Reduziam os salários, ainda que pagassem a diferença "por fora" do recibo de salário. O aliciamento foi feito separadamente, e pelo menos a um deles com a promessa de que se conseguisse convencer os outros não lhe era diminuído o salário. Os trabalhadores recusaram e, logo depois, a empresa começou a atrasar o pagamento salarial.

A 31 de Agosto de 2007, um dos dois filhos, sócio da empresa e gerente, criou uma nova firma. A Lamelas e Gonçalves, Lda passou a funcionar na garagem do apartamento de habitação do pai. Conseguido o alvará, a firma - segundo os trabalhadores - foi comprando o equipamento da empresa do pai e a receber os seus contratos de obras. Em Outubro de 2008, os responsáveis da Guerra, Gonçalves & Filhos começaram a falar das dificuldades da firma, que não conseguiam manter os salários e que já não iam pagar Novembro. E assim foi.

Ao longo de Novembro aliciaram os trabalhadores para aceitar contratos a prazo de seis meses na nova empresa do filho, prescindindo da efectividade e das indemnizações. Teriam de fazer o mesmo trabalho, nos mesmos locais. Os trabalhadores não aceitaram. E a 28 Novembro os 12 trabalhadores efectivos foram despedidos, mas sem o pré-aviso legal de dois meses. Nesse mesmo dia, de acordo com o Diário da República, os donos da Guerra, Gonçalves & Filhos mudaram a morada da sede da empresa para uma loja vazia. Teria sido isso que criou dificuldades à notificação dos empresários, quando o Estado interveio.

No dia seguinte ao do despedimento, os trabalhadores tentaram receber os seus créditos e indemnizações. Daria uns dez mil euros por cabeça. Em vão. Foi-lhes dito que não havia dinheiro e pediram-lhes para assinar uma carta de comunicação do despedimento com a data de 29 de Setembro, ou seja, perfazendo o período legal de pré-aviso de dois meses. Uma falsificação de documentos que constitui um crime. O empresário quis reaver os instrumentos de trabalho. Os trabalhadores recusaram-se, assumindo os seus direitos de retenção até que lhes pagassem as indemnizações. O empresário propôs-lhes antes trabalho "por fora", nas mesmas obras, embora com patrão diferente e que lhes passaria as cartas para a Segurança Social para receberem o subsídio de desemprego enquanto estivessem a trabalhar. Os trabalhadores recusaram e não assinaram nada.

"Se não entregarem as máquinas, encontramo-nos em tribunal." Mas avisou de que, se o fizessem, o melhor que poderia acontecer era receberem depois de anos de espera. E sem garantia. Os trabalhadores queriam mesmo que a lei fosse aplicada e pediram a intervenção do Estado. Passados mais de dois meses, ainda esperam.

A empresa faliu entretanto e o caso está no Tribunal de Comércio. À excepção do filho mais novo, todos deixaram de ser membros dos corpos sociais. E apresentam-se como credores da empresa falida, juntamente com a banca, a Segurança Social, a administração fiscal e os trabalhadores.

"Parece que os empresários sabem onde é que o sistema não funciona e sabem como fazer as coisas para que nunca sejam tocados", revolta-se um dos trabalhadores.
Quando começaram, há mais de dois meses, a tentar receber o que era seu por lei, nunca pensaram que os serviços do Estado fossem tão ineficazes. Tentaram suspender o despedimento, com uma providência cautelar. Mas ficaram particularmente escandalizados com a dificuldade que os tribunais demonstraram em notificar os donos da empresa. "Como é possível, se todos os dias os vejo?", diz um deles. "Vivem no mesmo sítio, vão aos mesmos locais, andam pelas mesmas obras. E ninguém os apanha..."
A revolta dos trabalhadores é maior porque optaram pelo caminho da legalidade, mas invariavelmente têm sido empurrados de um tribunal para outro - cada um deles parece estar a prejudicar a acção do outro, quando o caso é o mesmo - e sem que as autoridades façam valer a força da lei. Isto, apesar de terem sido cometidos crimes e de haver dívidas ao fisco e à Segurança Social.

No início eram 12. Agora são sete os que teimam em fazer valer os seus direitos. Não dão a cara para a fotografia porque receiam. "Tudo joga para que as pessoas desistam." Em vez de se colocar ao lado dos que estão em posição mais frágil, parece que o funcionamento do Estado protege quem escapa aos seus deveres, sentem.