30.6.09

Acomodados e sem dinheiro mas felizes

Gina Pereira, in Jornal de Notícias

Estudo sobre as necessidades dos portugueses revelaque dão valor ao trabalho mas sentem-se mal pagos


Gostam de trabalhar e até admitem ficar até à reforma na mesma empresa, mas sentem que não são devidamente remunerados. A maioria recebe até 900 euros por mês e às vezes não paga todas as contas, mas nada faz para mudar.

O retrato "paradoxal" dos portugueses foi feito através da leitura cruzada dos resultados de um inquérito que integra o estudo "Necessidades em Portugal, Tradição e tendências emergentes", ontem parcialmente apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, mas que só deverá estar concluído em Novembro, com o estudo de seis perfis de agregados familiares identificados pelos investigadores.

Dos 1237 agregados familiares de Portugal Continental que participam no estudo, mais de metade (56,8%) aufere até 900 euros mensais, sendo esta característica dominante no caso dos casais com filhos menores (50,2%) e dos casais sem filhos (57,6%). No caso das famílias monoparentais, das pessoas com mais de 55 anos e das pessoas que vivem sós, há uma grande percentagem que ganha menos de 500 euros, o que faz com que 35% dos inquiridos admitam ter níveis de privação médios e altos.

Cerca de um quinto dos inquiridos admitiram que, no último ano, tiveram dificuldade em pagar despesas como a prestação da casa, a alimentação e as escolas dos filhos e 26% tiveram dificuldade em pagar as contas da água, luz e gás. Os fracos rendimentos e as implicações para o orçamento familiar impedem que mais de metade dos inquiridos (50,9%) usufruam do total período de baixa médica e que 13,4% não comprem todos os medicamentos que lhes são receitados. Para 61,9% dos inquiridos, é mesmo impossível pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa e 32,6% não conseguem manter a casa aquecida no Inverno.

Embora considerem que não são devidamente recompensados (50%) e manifestem vontade de mudar a sua situação profissional, a verdade é que os portugueses parecem estar acomodados e pouco ou nada fazem para mudar: dos 30, 6% que admitem trocar de emprego, 37,5% confessam nada ter feito para que isso aconteça. E, apesar de acharem que ganham mal, 63,9% consideram improvável a hipótese de vir a ter mais do que um trabalho ou de mudar de lugar de residência para trabalhar (75%).

A acomodação não se verifica só em relação ao trabalho mas também à aquisição de novas competências. A maioria dos inquiridos (75,2%) não frequentou nos últimos três anos qualquer curso e apenas uma minoria deseja voltar a estudar. Não se sentindo preparados para comunicar em línguas estrangeiras (64,9%) e para utilizar a internet e o computador (53,6%), mais de metade admitem ter vontade de aprender.

Surpreendentemente, apesar das dificuldades que sentem no dia a dia, os portugueses dizem-se felizes: numa escala de 1 a 10, os valores de satisfação com a vida são de 6,6 e de felicidade 7,3 (ambos ligeiramente abaixo da média europeia que, de acordo com o European Quality of Life Survey, são de 7,2 e 7,6, respectivamente). Quando questionados sobre o que mais valorizam na sua vida, os portugueses apontam a vida familiar, os amigos e a zona de residência. Tornar a habitação financeiramente mais acessível, combater a corrupção e a criminalidade violenta são as suas prioridades para melhorar a qualidade de vida em Portugal.

Para Isabel Guerra, investigadora do Centro de Estudos Territoriais do Instituto Superior de Ciências Territoriais e da Empresa (ISCTE), que faz a coordenação científica do estudo, a principal revelação do inquérito foi a falta de confiança dos portugueses nos outros e nas instituições e "uma certa incapacidade de acção". "É fundamental aumentar os níveis de confiança uns nos outros e na governação", defendeu, admitindo que isso poderá passar por novas formas de participação e de reforço da cidadania.