19.6.09

Número de famílias pobres não pára de aumentar no Barreiro

Ana Lourenço Monteiro e Luis Filipe Ferreira, in Jornal do Barreiro

Carências alimentares afectam milhares de pessoas

Os estudos mais recentes apontam para que exista em Portugal uma percentagem de pobres muito próxima dos 18 por cento, o que representa a manutenção deste fenómeno em valores que revelam a forma constante como as desigualdades e a escassez de recursos afectam os padrões de qualidade de vida de um número ainda muito significativo de indivíduos. No Barreiro, a conjugação de factores de diversa ordem tem levado a que a pobreza atinja uma dimensão desconhecida para os observadores mais incautos, sobretudo pelo modo como este problema atinge os mesmos agregados familiares há vários anos.

Ao longo de vários dias, o Jornal do Barreiro realizou uma reportagem exaustiva sobre as carências alimentares que afectam um número crescente de pessoas que vivem o seu quotidiano com grandes dificuldades económicas, actualmente agravadas pela grave crise que o país se encontra a atravessar. O contacto com as entidades responsáveis pelo combate a este flagelo é reveladora da maneira como o concelho não tem escapado a esta dinâmica de empobrecimento, com o envelhecimento demográfico e a total falência do modelo de desenvolvimento que assentava nas indústrias pesadas a constituírem factores de agravamento desta realidade a nível local.

Neste momento, existem na cidade 10 instituições de solidariedade social que prestam um apoio alimentar regular a mais de dois milhares de barreirenses que, sem a sua ajuda preciosa, acabariam por ter que passar fome durante largos períodos de tempo. Só no decurso de 2008 registou-se um aumento da ordem dos 40 por cento dos casos registados, sem que este valor inclua o crescimento considerável destas situações verificado no primeiro semestre deste ano ou consiga abranger a maneira como a vergonha impede que muitas das pessoas afectadas revelem as enormes dificuldades com que vivem diariamente.

As crianças, os idosos e os desempregados são alguns dos grupos sociais que se encontram em maior risco de caírem nesta espiral de exclusão, da qual só conseguem sair através da atitude solidária das dezenas de pessoas que integram as associações que contactámos para elaborar este trabalho.

Barreiro Velho e Cidade Sol têm maior percentagem de crianças carenciadas

No quadro de uma crise mundial e nacional com inevitáveis reflexos no concelho do Barreiro, o aumento do desemprego e os baixos rendimentos tem sido um dos factores que agravam a necessidade de apoio alimentar por parte de diversas famílias carenciadas. Segundo dados de Dezembro de 2008 do Diagnóstico Social do Barreiro (ver quadro), 819 agregados familiares – o que corresponde a 2355 indivíduos – recorrem a instituições de solidariedade social da cidade capazes de prestar auxílio a nível alimentar, que compõem o denominado Banco Alimentar do concelho: um programa comunitário constituído por 10 instituições que apoiam a nível alimentar as famílias mais carenciadas.

De acordo com informações da vereadora responsável pela área da Acção Social da Câmara Municipal do Barreiro (CMB), Regina Janeiro, as crianças procedentes destes agregados e que frequentam as escolas do 1º ciclo do ensino público do concelho chegam aos cerca de 36 por cento. Como forma de apoio, a autarquia fornece um total de 172 542 refeições por ano lectivo a estas crianças carenciadas, o que corresponde a 45 por cento do total de refeições facultadas nos refeitórios geridos pela CMB.

Os casos mais problemáticos encontram-se no Barreiro Velho, na freguesia do Barreiro, e na Cidade Sol, na freguesia de Santo António da Charneca, locais onde o número de crianças identificadas com escalão A de apoio social se destaca em relação ao das restantes escolas do concelho. Na EB1 de Santo António, na Cidade Sol, a percentagem de crianças carenciadas – com escalão A – chega aos 37,5 por cento; na Escola nº 1 do Barreiro, este valor ascende aos 50 por cento, estabelecimento onde são fornecidas seis mil refeições/ano lectivo.

Regina Janeiro admite que o auxílio prestado pela autarquia faz parte de uma postura assumida de “articular apoios com as instituições no terreno e não empolar as situações”, antecipando os previsíveis problemas a chegar no dia-a-dia. “Devemos estar preparados em conjunto; cada instituição tem as suas próprias funções e, no caso da Câmara, tem um atendimento personalizado aos cidadãos que solicitam apoio, entrando posteriormente em contacto com a Segurança Social para avançar com os processos”, adianta a vereadora, explicando no que consiste o funcionamento do Centro Local de Acção Social do Barreiro (CLASB). Este é precisamente o órgão constituído para acompanhar a evolução da situação social do concelho, com base num núcleo executivo do qual fazem parte entidades como a CMB, Juntas de Freguesia, Segurança Social, Escolas e Centros de Saúde e IPSS.

Ainda assim, Regina Janeiro alerta para que o que deverá ser combatido de raiz é o desemprego, enquanto catalizador das reais carências alimentares existentes, nomeadamente através da promoção do desenvolvimento económico. “O fundamental é prevenir pois o que fazemos é actuar sobre as consequências”, argumenta a vereadora.

‘Novos pobres’ chegam em maior número à Santa Casa


A Santa Casa da Misericórdia do Barreiro (SCMB) é uma das maiores instituições do concelho que presta apoio a carenciados através de uma Comunidade de Inserção, constituída formalmente há cerca de um ano. O auxílio facultado abrange não só o serviço alimentar, mas também áreas como higiene pessoal, tratamento de roupa, distribuição de roupa e calçado, apoio social e psicológico e médico.

Qualquer apoio fornecido é “previamente sinalizado pela Segurança Social”, conforme explica a directora desta Comunidade de Inserção, Maria José Caixeirinho, ainda que, por vezes, seja solicitado apoio directo à Santa Casa. Os motivos que conduzem à necessidade de apoio são já conhecidos: a ausência de rendimentos ou a existência de vencimentos reduzidos para cobrir todas as suas despesas; a falha de, pelo menos, um dos vencimentos dos cônjuges leva também ao limite passando a constituir-se como os ‘novos pobres’ – famílias que deixam de ter margem de manobra monetária quando pensam ter a vida controlada. “São os que nos têm aparecido mais, ultimamente”, afirma a responsável.

Ainda que existam muitas famílias constituídas por pai, mãe e filhos – maioritariamente agregados com muitos menores a cargo –, Maria José Caixeirinho adianta que existem também “muitos casos isolados”, bem como “jovens que padecem de doenças psíquicas”, sobretudo esquizofrénicos, e em, alguns casos, toxicodependentes. Numa perspectiva de reinserir social e profissionalmente todas estes indivíduos, a Comunidade de Inserção procede ainda a um encaminhamento dos utentes, embora a sua reinserção esteja condicionada.

“Tentamos sempre estimular o utente na perspectiva de agarrar num jornal, procurar formação, procurar um emprego, mas, em certos casos, não arranjam e o facto de haver famílias muito numerosas leva a que não saibam onde deixar os filhos e não consigam que estes sejam aceites em infantários, por exemplo”, argumenta Maria José Caixeirinho relembrando que “nem sempre o prazo para o apoio alimentar estabelecido pela Segurança Social a uma família é cumprido”. “Temos famílias há mais de um ano a recorrer ao nosso apoio”, diz.

Através da Comunidade de Inserção, a Santa Casa presta ajuda a um total de 85 utentes, número que vai além do limite de 60 utentes estabelecido no acordo concretizado há cerca de um ano com a Segurança Social para apoiar esta valência. Para poder prestar auxílio a mais carenciados, o provedor da instituição, Júlio Freire, contesta uma alteração ao acordo firmado. “Conseguir este apoio foi um grande avanço porque o serviço estava já a ser prestado a custos zero, mas, neste momento, reivindicamos que o acordo seja revisto para preços condizentes”, explica.

Júlio Freire declara que, por um lado, “são fornecidos mais apoios dos que os que são previstos”; por outro, “não se prevê um fim próximo à crise instalada e o volume de pessoas que recorrem á Santa Casa tem aumentado quase todos os dias”, situação que tem levado os serviços a ”rejeitar apoio”. “É contra os princípios da Santa Sasa rejeitar comer ou apoio seja a quem for, uma das obras mais importantes da Misericórdia é precisamente dar de comer a quem tem fome”, explica o provedor.

Na opinião deste responsável, o Governo e a Segurança Social devem encarar “a realidade deste país e das instituições de solidariedade, sobretudo das Misericórdias”. Para ajudar condignamente os carenciados da cidade, Júlio Freire pensa já em aumentar a valência Comunidade de Inserção, transferindo os seus serviços para uma instalação junto à Rua 5 de Outubro. “Já falámos com a Câmara para autorizar a fazer a obra; esta é uma situação que requer muito dinheiro mas que temos que fazer porque o número de pessoas não pára de aumentar e precisamos que alguém nos ajude”, conclui.

Duzentos novos casos de pobreza identificados pela Associação Comunitária do Barreiro (ACB)

Na sede da ACB, vive-se ainda alguma da agitação motivada pela inauguração recente das suas novas instalações, que vieram dotar esta instituição de melhores condições para apoiarem as largas centenas de barreirenses que a procuram, de maneira regular, para verem resolvidos algumas das carências que caracterizam o seu quotidiano. Neste momento, encontram-se a ser acompanhadas mais de novecentas pessoas, o que representa um acréscimo considerável relativamente aos dados disponíveis em finas de Dezembro de 2008 e que reflectem o crescimento exponencial verificado neste tipo de situações.

De acordo com Álvaro Gaspar, presidente desta instituição de solidariedade social, um dos principais problemas “reside no baixo rendimento destes agregados familiares”, que se faz sentir com maior incidência “na Freguesia do Barreiro, porque é aí que se localiza o Bairro das Palmeiras e se concentram as pessoas de maior idade que vivem sozinhas”, mas refere que neste momento já começa a aparecer “muita gente jovem, principalmente imigrantes”. Apesar de no primeiro semestre deste ano se ter registado um aumento de cerca de duzentas novas situações de carência alimentar, encontram-se a aguardar para serem “inscritas cerca de uma centena de indivíduos”, como refere Augusto Caseiro, que sublinha ainda o facto de “no número de pessoas apoiadas encontrarem-se contabilizadas perto de trezentas crianças”.

A comida que é cedida semanalmente pelo Banco Alimentar Contra a Fome é distribuída aos sábados e às quintas-feiras, através da verificação dos rendimentos dos carenciados e da sua inscrição numa base de dados da Segurança Social, criada para evitar os casos de abusos pontuais em que as ajudas pudessem vir a ser atribuídas a quem não necessite verdadeiramente delas. Actualmente, esta associação conta com a colaboração de um grupo muito reduzido de voluntários e de setenta e seis sócios, o que tem criado algumas dificuldades evidentes ao desenvolvimento de novos projectos devido às limitações resultantes desse facto.

A pobreza nos idosos

O Centro Social Paroquial Padre Abílio Mendes, localizado no coração do Barreiro Velho, acolhe diariamente várias dezenas de idosos, aos quais são prestados diversos tipos de cuidados que passam pela realização de actividades lúdicas, apoio domiciliário ou fornecimento de refeições. Esta Instituição Particular de Solidariedade Social foi fundada em 1956, com o objectivo de acorrer às situações de carência que atingem a terceira idade nas Freguesias do Alto do Seixalinho, Verderena, Palhais e Barreiro, continuando ao fim de várias décadas a desempenhar com enorme mérito a missão para a qual foi criada.

Num concelho em que os indicadores de vitalidade demográfica registaram uma forte inversão no decurso dos anos noventa, os problemas sociais relacionados com os idosos têm vindo a assumir, gradualmente, uma dimensão mais preocupante, com os baixos rendimentos e a solidão em que vivem muitos destes barreirenses a configuram o aspecto mais visível da exclusão social neste escalão etário, mas que gradualmente tem vindo a atingir outros grupos sociais.

Paula Franco, directora do Centro Padre Abílio Mendes, embora reconheça que “a instituição ainda não tem uma intervenção definida ao nível de situações de pobreza como a Misericórdia ou o Catica, que fazem distribuição regular de géneros alimentares”, sublinha o facto de “pontualmente ser feito o atendimento e o encaminhamento de situações deste género, durante o período de tempo necessário para os indivíduos em causa conseguirem ter outro tipo de apoios”. De acordo com esta responsável, os casos que chegam ao seu conhecimento “começam a abranger uma camada de pessoas mais velhas, entre os quarenta e cinco e os sessenta anos, o que contraria a tendência que se verificava anteriormente”, destacando a existência de carências do ponto de vista do voluntariado que tem alguns reflexos negativos na prossecução dos objectivos da associação que integra.

O efeito do desemprego no aumento dos casos de pobreza

José Palma integra há vários anos a Cáritas Diocesana e a Conferência de São Vicente de Paula da Igreja de Santa Maria, destacando o facto de a crise que atravessamos estar a conduzir “ao reaparecimento de famílias que já não solicitavam apoio há algum tempo e casos de novos carenciados, que apresentam como factor comum o desemprego”, embora existia um outro grupo considerável de pessoas que não solicita ajuda pelos canais tradicionais “por vergonha da situação em que se encontram e que nos preferem contactar informalmente, através de um dos nossos elementos ou do padre da paróquia”.

A persistência dos casos de pobreza nos mesmos agregados familiares durante longos períodos tempo é outro dos aspectos mais visíveis deste fenómeno inquietante, numa situação que está a procurar ser contrariada “pela campanha Portugal solidário que tenta colmatar os problemas o que os subsídios estatais não conseguem resolver, levando a que se procure dar formação para o desempenho de novas funções ou aquisição de novos conhecimentos”, e permitindo uma melhor reinserção no tecido social dos carenciados, como refere este membro da Conferência de São Vicente de Paula.

Por outro lado, como refere José Palma, é habitual que ”antes de se começar a ajudar não se tenha uma noção muito clara dos problemas existentes, sendo importante assegurar a uma maior de sensibilização dos barreirenses para a existência de muitas pessoas que enfrentam necessidades muito grandes”. O desconhecimento quase generalizado da amplitude e do dramatismo que a exclusão social atinge na nossa cidade é, muito provavelmente, uma das principais causas para a elevada incidência de situações de carência alimentar que se prolongam quase indefinidamente.