28.7.09

"Beneficiários são poucos"

Bruno Contreiras Mateus, in Jornal de Notícias

Manuel Lemos não acredita que a descida da taxa de pobreza dos idosos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), se deva ao Complemento Solidário.

O presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, aceitou ser entrevistado por Fernando Diogo, especialista na análise sociológica da pobreza.

Fernando Diogo – Sente-se realmente uma diminuição da pobreza entre os mais velhos por via do Complemento Solidário para Idosos?

Manuel Lemos – Claro que não. Não só os beneficiários são poucos, como sobretudo a distribuição de recursos pelos idosos muitas vezes não reverte em seu beneficio mas das suas famílias.

FD – No corrente ano, já com os efeitos da crise, em que tipo de pessoas e de famílias as misericórdias sentem que a pobreza está a aumentar? E em que percentagens?

ML – O que é mais evidente é a procura das Misericórdias por pessoas com perfis diferentes dos tradicionais; níveis etários mais jovens, desempregados, jovens casais em que o desemprego de um deles colocou a economia familiar em risco; é também nessa linha, muito evidente, o numero de pessoas que manifestam dificuldade em assegurar as comparticipações para creches, jardins de infância dos seus filhos ou então em assegurar a comparticipação das famílias no casos de idosos em Lar. Também a procura de refeições nas cozinhas comunitárias que em muitos casos nas Misericórdias com essa resposta aumentou 100%, mudando também o perfil do consumidor. Mas Misericórdias por natureza não recolhem percentagens; não é esse a nossa Missão. recolher percentagens custa dinheiro que as Misericórdias não têm

FD – Nem todos os pobres são iguais, qual é para si o perfil mais vulnerável a uma maior intensidade da pobreza, isto é, com condições de vida mais degradadas?

ML – Para mim o que mais me impressiona são os idosos pobres, ás vezes a viver em situações limite ou então as crianças. Mas é evidente que os pobres tradicionais estão mais preparados para resistir a situações de crise, do que os novos pobres, porque os mecanismos de sobrevivência são obviamente diferentes.

FD – Em sua opinião o que é que justifica o acréscimo da pobreza juvenil e infantil que os dados do Euro-SILC divulgados pelo INE mostram (sem nos esquecermos que estes dados foram obtidos antes da actual crise económica)?

ML – A principal razão é porque o Estado insiste em distribuir recursos em vez de distribuir serviços. E claro a situação económica de muitas famílias já estava distorcida antes da crise; diria, que a sociedade de consumo cobra a seu quinhão de tragédia. Por exemplo, não é por acaso que as crianças dos bairros pobres muitas vezes têm 2 ou 3 telemóveis, ou não fosse a pobreza também incapacidade de gerir recursos

FD – De que maneira é que as misericórdias portuguesas lidam com as famílias que a elas recorrem e cujos rendimentos estão ligeiramente acima do limiar oficial da pobreza (com rendimentos per capita, por exemplo, à volta do salário mínimo)? (sabendo que o limiar de pobreza foi de 406 euros em 2007 por adulto equivalente).

ML – As Misericórdias sabem que a pobreza não se reduz a uma visão economicista. Ter recursos a esse nível ( ligeiramente acima do tal limiar economicista) não resolve nem problemas básicos de cidadania ,nem as questões da solidão, nem da insegurança. É por isso que, muitas vezes, as estatísticas dão conta de uma realidade virtual que não tem correspondência com a realidade 'real'. A relação das Misericórdias com os cidadãos é uma relação de confiança bem diferente daquela que o mesmo cidadão tem com o Estado. No fundo, sempre se pode dizer que vai para 511 anos, que cada um sabe que nas Misericórdias contribui com os recursos que tem para ajudar os que nada têm

FD – Qual a percepção das misericórdias em relação ao impacto da actual crise económica no aumento da pobreza? Em que percentagem aumentou o recurso aos apoios das misericórdias por parte de pessoas caídas em situação de pobreza por causa da actual crise económica?

ML – É preciso ter presente que 'as Misericórdias fazem o bem sem olhar a quem' querendo com isto dizer que não maçamos as pessoas obrigando-as a preencher papeis como compreensivelmente o Estado tem que fazer; por isso os vulgarmente designados 'pobres envergonhados' nos procuram e não ao Estado.

Senhor Professor: Como se coloca, em sede de combate à pobreza em Portugal, perante o dilema distribuir mais dinheiro às pessoas ou distribuir serviços?

FD – Ambas as formas de combater a pobreza são necessárias. É no justo equilíbrio entre as duas que está a dificuldade. A base para a ultrapassar é a aferição da eficácia no combate à pobreza e na autonomização das pessoas, envolvendo a avaliação dos dois tipos de medidas. Com a distribuição directa de dinheiro às pessoas ganha-se em dois campos, as pessoas são mais eficazes a gerir a sua própria vida, tanto mais que há muita gente em situação de pobreza em Portugal cujo único problema é simplesmente insuficiência de recursos, e evitam-se os excessos de paternalismo associados à ideia de que alguém exterior é que sabe (deve) gerir o dinheiro de cada um, contribuindo-se assim para a cidadania e para a democracia. Com o aumento dos serviços, presta-se aos indivíduos um apoio que, dependendo do serviço concreto, os pode libertar para o trabalho e fazer ganhar autonomia. Por exemplo, no caso das mães com filhos pequenos conseguir colocá-los em creche liberta-as para o trabalho.

De notar que os poucos estudos feitos em Portugal sobre as solidariedades de proximidade têm mostrado que estas são menores entre os indivíduos mais pobres do que entre outros grupos sociais. Quer dizer, são, precisamente, as pessoas mais pobres que mais precisam dos serviços de apoio à família e ao indivíduo já que são quem tem menos apoios familiares, de vizinhos ou de amigos.