23.7.09

Miséria à beira da estrada

Ricardo Miguel Gomes, in Região Bairradina

1. Felizmente não há sinais de pobreza extrema no concelho de Anadia ou, pelo menos, que sejam perceptíveis a um olhar menos atento. Talvez por isso se torne ainda mais chocante essa espécie de campo de refugiados que se instalou à entrada de Espairo, junto à EN1. Falo do acampamento cigano onde adultos e crianças vivem em perfeita imundice, tendo apenas como resguardo umas tendas mal-amanhadas e a estrutura de uma obra inacabada. Faltam as mais elementares condições de vida, o que é aviltante não só para aquelas pessoas como para a comunidade que permite que se viva de forma tão degradante.

Por ignorância ou preconceito, muito boa gente pensa que a miséria faz parte do modo de vida nómada dos ciganos. Mas não tem nem deve ser assim. Há já várias autarquias a implementarem inovadores projectos de integração e acompanhamento de famílias desta etnia, logrando encontrar soluções de compromisso entre o nomadismo e aquilo que são os mais básicos padrões de bem-estar. É certo que muitos projectos neste âmbito falham redondamente, amiudadas vezes porque os principais interessados, os ciganos, não colaboram. Mas também é verdade que foram alcançados, em alguns concelhos, resultados pelo menos encorajadores, como se verifica, por exemplo, no Parque Nómada de Coimbra.

Não tenho vocação para bom samaritano, mas parece-me que as entidades públicas não podem fazer “vista grossa” ao que se passa naquele acampamento. Nenhuma câmara municipal deve consentir, primeiro, que na sua área de jurisdição haja famílias a viver em condições infra-humanas e, depois, que quem quer que seja acampe livremente em terrenos devolutos, como se afigura ser o caso. É que, com medo de parecerem intolerantes para com uma minoria étnica, as autarquias fecham muitas vezes os olhos aos acampamentos ciganos sem autorização camarária. E assim nem fazem cumprir a lei, nem ajudam as famílias ciganas a viver com um módico de dignidade.

Importa ressalvar que os projectos de integração de famílias ciganas (ou de qualquer outra etnia ou condição social) devem incluir obrigações rigorosas para os beneficiários, sob pena de se resvalar para um tipo de caridade que acaba, muitas vezes, por perverter os propósitos iniciais e revelar-se socialmente injusta. Assim, a realojamentos definitivos ou temporários deve corresponder um conjunto de exigências para as famílias abrangidas, a começar pela conservação das casas, pelo bom relacionamento com a vizinhança e pela frequência escolar das crianças.

2. O início das sessões de cinema no Cineteatro Anadia causou em mim emoções contraditórias. O meu gosto pela Sétima Arte leva-me naturalmente a regozijar com a possibilidade de assistir, na minha vila (continuo a recusar o estatuto novo-rico de cidade), à actual produção cinematográfica. Muito embora tenha consciência de que, pelo tipo de filmes já exibidos, a maioria das propostas em cartaz não irá certamente motivar o meu interesse. Ainda assim, parece-me melhor do que nada. Dispor de cinema é, sem dúvida, um indicador de civilidade para o concelho e pode fazer despertar nos mais jovens o gosto por ver filmes em grande ecrã, algo que se vai perdendo na actual enxurrada multimédia.

Paradoxalmente, a circunstância de ser a autarquia, mediante um protocolo com a Lusomundo, a programar e explorar as sessões de cinema constitui um sinal de atraso do concelho. A exibição cinematográfica é hoje uma actividade eminentemente privada, limitando-se os poderes públicos, quanto muito, a assegurarem o acesso a um cinema menos comercial (por exemplo, os grandes clássicos e as produções independentes). Além disso, Anadia não é propriamente uma aldeia isolada do interior do país. Há muito que existe oferta cinematográfica na região, embora implicasse deslocações nem sempre cómodas.

Tudo somado, gostava que o tempo acabasse por justificar o investimento municipal na exibição cinematográfica. Ou seja, que as sessões de cinema em Anadia estivessem, senão cheias, pelo menos compostas. Que o público ignorasse o mamarracho que é o Cineteatro e se entregasse com enlevo a esse “fluxo constante de sonho”, como chamou Orson Welles ao cinema.