27.7.09

Palavras que narram o quotidiano

por Isadora Ataíde, in Diário de Notícias

O 'hip hop' em Portugal envolve inúmeras figuras ainda desconhecidas do grande público. Escrevem sobre o que vivem, vêem e ouvem as suas comunidades. Nas rimas cantam as suas percepções sobre o mundo. As suas vozes saem em crioulo e em português para preservar as suas culturas. Acreditam num 'rap' de intervenção, e querem fazer-se ouvir.

"O mundo ignora quem chora, o mundo ignora a pobreza, miséria é um cenário/ Nas ruas por onde passo, almas inocentes condenadas ao fracasso/ Olhares esfomeados, crianças morrem de fome/ A culpa é de quem, de Deus ou do homem?" Os versos de Caycay traduzem a sua interpretação do rap. "Sou um porta-voz dos problemas da minha comunidade. A minha música é um canal para retratar as dificuldades sociais, o desemprego, a falta de oportunidades para os jovens. O rap é uma narrativa do quotidiano, um modo de colocar cá para fora o que vemos e sentimos", define Caycay, 27 anos.

Nasceu em Canchungo, na região oeste da Guiné-Bissau, onde a família dependia da agricultura de subsistência e do caju. Aos 11 anos, com o objectivo de estudar arquitectura, veio para Portugal viver com o pai, no então bairro das Marianas, em Oeiras. Encontrou-se com o hip hop através do desenho. "No liceu ganhei o prémio nacional de desenho com o tema da morte de Santo António e comecei a relacionar-me com os jovens que faziam graffiti, que é uma vertente da cultura hip hop, junto com a actuação do Mestres de Cerimónia e do breakdance, nesse caminho encontrei outros rappers e passei a fazer letras que reflectiam os problemas da comunidade", conta Caycay.

Discriminação racial, desemprego, falta de infantários, tráfico de drogas e violência policial estão entre os problemas que cercam Caycay. Embora os moradores do antigo Bairro das Marianas tenham sido realojados em 2007, a população continua a designar a região com o mesmo nome, na leitura do rapper. A divisão do bairro resultou na multiplicação dos problemas: "Não posso fazer música a falar de amor quando as pessoas estão a sofrer. O rap comercial é música de discoteca apenas para o entretenimento e para se fazer dinheiro. A música que eu faço é de intervenção, para consciencializar os jovens, para que saibam que é preciso encontrar soluções para as desigualdades que nos atingem", sublinha.

O rap português tem raízes inevitavelmente ligadas às origens norte-americanas desta música. Acrónimo de rhythm and poetry, o rap surgiu entre comunidades negras da Nova Iorque dos anos 70. Em Portugal, foi em bairros economicamente menos favorecidos, onde predominam as comunidades de origem africana e cigana, que o rap mais se faz ouvir. O antropólogo Otávio Raposo, doutorando no ISCTE, autor do documentário Nubai - O Rap Negro de Lisboa, de 2006, lê na música dos subúrbios a busca pela identidade. "São jovens de origem africana e pobres, que através do rap reflectem sobre as suas vidas e querem intervir no seu quotidiano. Não se trata de um processo de vitimização, pelo contrário, nas suas letras há relato e autocrítica. É mais do que um estilo musical, é uma bússola para se guiarem no mundo e construírem a sua identidade. Com o rap subvertem o discurso da sociedade sobre eles e amenizam a negação do estatuto igualitário em relação aos jovens de classe média".

"Como também nos elegeu Ele, antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos irrepreensíveis diante dele e nos predestinou para filhos da nação de Jesus Cristo." Os versos são do rapper Kromo di Guetto em Dia di amanhã, faixa que integra o álbum Genisis, gravado num estúdio na Cova da Moura, onde nasceu e vive. "Nesta fase a minha música é de intervenção espiritual. Líderes como Malcom X e Martin Luther King combatiam o ódio com amor e eu sigo o seu exemplo. O rap é um desabafo do que se passa nas ruas, da tristeza pelos amigos perdidos. Eu quero fazer algo de útil através da minha música", afirma o jovem.

Filho de cabo-verdianos naturais da ilha de Santiago, Kromo cresceu a ouvir e a compreender o crioulo, mas até a adolescência não o falava. "Percebi que estava a perder a minha cultura, o que me fez decidir escrever as letras de rap em crioulo. A música, em qualquer língua desperta a curiosidade de quem ouve para outras culturas. Quero chamar a atenção para o crioulo de Cabo Verde e contribuir para a preservação da língua." Enquanto espera "condições ou oportunidade" para reproduzir e distribuir o seu disco, Kromo actua nos bairros da Amadora e de Lisboa ou "onde se quiser ouvir rap", garante.

Para ser rapper não é preciso vender discos, aparecer na televisão ou nas revistas especializadas. "O rap é um discurso, é uma denúncia. Em África a história transmite-se entre as gerações através da palavra. Entre os escravos americanos o tambor foi proibido, e por isso a palavra adquiriu uma importância tão grande para marcar o ritmo da música. Ser rapper é transmitir uma mensagem através da música, ter protagonismo na comunidade e contribuir para a conscientização e mobilização social através das letras", explica Chullage, 32 anos.

"Após a noite escura, a luz/ traz o relatório da tragédia vista a olhos nus/ mas ninguém impede-a/ a resolução não vem nos media/ na enciclopédia/ a verdadeira dimensão só quem a vive mede-a", canta Chullage em National Guettographik. Foi na Arrentela, no Seixal, que o rapper aprendeu a conviver com a diversidade cultural. "É uma comunidade de imigrantes - ciganos, africanos, portugueses. O determinante é a pobreza e não a etnia ou a nacionalidade. Todos na comunidade enfrentam os mesmos problemas: desemprego, dificuldade no acesso à educação e a formação profissional. A intervenção social do Estado tem de ser emancipadora em vez de assistencialista", assinala o jovem, que além de músico é sociólogo. Com dois discos, Rapensar e Rapresálias, em edições que não ultrapassaram as duas mil cópias, o rapper é referência. "Divulgamos o trabalho pela Internet e em shows intimistas onde a música possa ser ouvida e a mensagem transmitida. Não queremos perder o carácter de intervenção do rap, o que faz com que a nossa música não alcance os grandes canais de divulgação. Isso não é um problema, nem um objectivo, utilizamos a música enquanto arte que emancipa e nos mobiliza".