23.11.09

Mais crianças e jovens a fazer trabalho a favor da comunidade

Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Acompanhamento educativo ainda é "castigo" mais frequente, mas avançam imposição de obrigações e trabalho a favor da comunidade


A tendência tem vindo a acentuar-se de forma gradual. Frente a crianças e jovens que cometeram crimes, os tribunais de família e menores estão a ditar menos acompanhamento educativo e a apostar mais na imposição de obrigações e no trabalho a favor da comunidade.

O hábito pesa. A Organização Tutelar Educativa, que vigorava desde 1962, "tinha uma medida que se chamava acompanhamento educativo e que era aplicada com muita frequência", recorda o procurador Rui do Carmo, do Tribunal de Família e Menores de Coimbra, de licença sabática. Nos primeiros tempos da Lei Tutelar Educativa, em vigor desde 2001, "os tribunais faziam o mesmo".

Houve uma queda abrupta na aplicação da medida de acompanhamento educativo entre 2001 (860) e 2002 (514). Seguiu-se uma estabilização. E, desde 2004 começou a perder popularidade. No ano passado, os tribunais já só a ditaram 395 vezes.

Como Rui do Carmo, Judite Babo, procuradora do Tribunal de Família e Menores de Gaia, não fica surpreendida. Tirando o internamento, "nenhuma medida limita tanto a autonomia" como o acompanhamento educativo. E, afinal, "a maior parte" dos actos cometidos por crianças e jovens encaixa na pequena criminalidade.

O tribunal pode optar pela admoestação; pela privação do direito de conduzir ou de obter permissão para conduzir ciclomotores; pela reparação ao ofendido; pelas prestações económicas; pelas tarefas a favor da comunidade; pela imposição de obrigações; pela frequência de programas formativos; pelo acompanhamento educativo; e pelo internamento em centro educativo.

O tribunal opta cada vez mais pela imposição de obrigações - 380 no ano passado, quando em 2001 foram apenas 34. Pode impor ir às aulas, frequentar um curso ou um programa terapêutico. "É raro o rapaz ou rapariga que chega aqui e que está no ano certo de escolaridade", diz Celso Manata, procurador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa. "Há sempre chumbos. Hoje ouvi quatro: três tinham dois chumbos e um tinha quatro". O tribunal também decide cada vez mais pelo trabalho a favor da comunidade - 186 no ano passado, quando em 2001 eram apenas 16. Já é a medida mais usada, por exemplo, no Porto. Até quarta-feira passada, a equipa acompanhou 91 casos. A coordenadora, Helena Santos, gaba-a: "É a medida que tem mais adesão dos miúdos e, por isso, a que tem menos incumprimento".

A reparação ao ofendido raramente é usada. Imagine-se um miúdo que partiu uns vidros ou que roubou um carro para dar umas voltas e o espatifou. "Tem dinheiro para fazer reparação ao ofendido? O ofendido quer?", questiona Manuel Santa, procurador do Tribunal de Família e Menores do Porto. E de que serve isso se está a faltar às aulas e continuará a fazê-lo? "O objectivo da lei tutelar educativa é educar para o direito e inserir a criança ou jovem", reflecte.

Que miúdos são estes? Quase sempre rapazes (88 por cento); quase sempre oriundos de zonas de construção ilegal e de bairros sociais. Têm 13 (21 por cento), 14 (27 por cento) ou 15 anos (36 por cento) quando cometem o crime - furtos e roubos, sobretudo. E 14 (20 por cento), 15 (32 por cento), 16 ou mais (30 por cento) quando cumprem a medida. Alguns nem sequer a cumprem.

O grosso dos processos nem chega às mãos dos juízes. Retome-se o exemplo de Lisboa. No ano passado, 2986 processos tutelares foram movimentados naquele tribunal: 1552 arquivados, 408 remetidos para outros tribunais, 121 passaram para a fase jurisdicional (855 transitaram para este ano).

Manuel Santa desmonta a discrepância entre o que entra e o que chega ao juiz. Primeiro, muitos crimes dependem de queixa. Segundo, nem sempre se recolhe indícios suficientes. Terceiro, em crimes menores, a criança ou jovem pode apresentar um plano de conduta e o inquérito pode ser suspenso. Judite Babo dá o exemplo típico da rapariga que rouba uma camisola numa loja de um centro comercial. Tem retaguarda, é assídua nas aulas, nunca fizera nada do género, deduz-se que não repetirá a façanha. "Quando a família é funcional, encarrega-se de dar o raspanete, o castigo."

Há acidentes de percurso. E carreiras criminais. Há contextos mais protectores e contextos de maior risco. Celso Manata recorda a história de um miúdo que andava no roubo. O pai adormeceu enquanto ele estava a ser ouvido. E tudo isso pesa na hora de decidir a medida.

O acompanhamento educativo (como o internamento) foi pensado para quem tem um percurso comportamental anti-social problemático e carece de uma intervenção intensa. "Não havendo família estruturada, não se pode aplicar", nota. "E também tem de haver um serviço de reinserção social operante - o que nem sempre acontece."

O problema coloca-se logo no diagnóstico que antecede a tomada de decisão. Em Lisboa, um dos tribunais com maior volume de processos, "consegue-se ouvir o menor no mínimo em três meses e pode esperar-se seis meses pelo relatório social [da equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social (DGRS)]", diz Celso Manata. "No final de Setembro, havia 34 à espera há mais de três meses, 11 há mais de seis meses!"

Nem só ali há atraso. A lei estabelece 15 dias para a entrega da informação social e 30 para a entrega do relatório social.

Quando o Instituto de Reinserção Social se transformou em DGRS, Manuel Santa, do Tribunal de Família e Menores do Porto, perguntava-se "se uma equipa de seis técnicos seria suficiente" para oito concelhos. "As respostas estão cada vez mais atrasadas. O que devia ser feito em 15 dias demora, no mínimo, mês e meio a dois meses", remata