21.12.09

O frio não tira da rua quem esqueceu a casa

por Céu Neves, in Diário de Notícias

1100 vivem nas ruas de Lisboa, mas o plano de contingência só é accionado ao fim de quatro dias de mau tempo seguidos.


0º C marcava o termóstato às 03.00 na Avenida da República em frente ao Campo Pequeno. O sem-abrigo que circulava embrulhado num cobertor para enganar o frio já se aninhara num recanto em Santa Apolónia. O casal da Almirante Reis dormia depois de ter tomado a dose diária. A mulher da Avenida da Liberdade não conseguia aquecer os ossos com a fina manta, mesmo depois de beber um pacote de vinho. O homem que montou uma tenda de cartão e fez a cama com vários cobertores fazia um sono profundo. Retratos dos sem-abrigo de Lisboa que, ontem à noite, sofreram com uma das madrugadas mais fria do ano.

"Dormi uma vez no albergue de Xabregas, vi lá muitas coisas de que não gostei". Conta o homem do cobertor, o Paulo Bernardo, 43 anos. Os vizinhos do bairro América, onde diz que todos os conhecem, é que lhe deram a manta/cobertor. A "sopinha" levada por uma das carrinhas que circulam por Lisboa aqueceram-no, mas a noite está a revelar-se difícil. "O clima atmosférico está a mudar", comenta.

Pedro diz que está na rua desde Agosto, mês em que também terá deixado o trabalho na construção civil, por se ter "chateado com o encarregado", e a casa onde vivia com uma das três irmãs. Mas as conversas desprendem as línguas e acaba por admitir que tem problemas de alcoolismo e que já esteve num centro para alcoólicos. "Agora não bebo… bebo um ou outro copinho, mas estou bem. Vou deixar estar vida, arranjar trabalho, no próximo mês", promete.

Promessas que todos fazem e poucos cumprem, bem sabem os técnicos, voluntários e assistentes sociais que prestam apoio aos sem-abrigo. Promessas que só iludem os próprios.

É para o mês que vem que Francisco Silva promete ir tratar dos documentos, arranjar trabalho, enfim, mudar de vida. Tem 46 anos, os últimos oito dormidos na rua. Mas é um sem-abrigo zeloso e limpo, condições que prometeu manter ao dono da oficina em cuja entrada monta a tenda, no Saldanha. Faz a higiene diária na casa-de-banho do centro comercial ao lado e, para banhos, vai ao balneário da AMI, nas Olaias.

"Durmo aqui desde 2001. Albergues… não quero. Fui roubado. Também não gosto de me juntar aos outros, não quero confusões. O homem pediu-me para deixar isto sem nada [cartões e cobertores] e eu cumpro", explica.

Pedro tem três filhos, que não vê há muito tempo. Teve várias profissões, nomeadamente trolha e coveiro, este último em Alcobaça, conta que foi explorado numa quinta em Espanha, que se "em confusões". Álcool e droga? "Isso tudo", admite. E agora? "Os meus vícios são o tabaco, o café e uma cervejinha de vez em quando".

Tem roupa nova e um aspecto cuidado, "a Comunidade Vida e Paz é que me deu tudo", explica. É uma das 4000/4500 pessoas que, todos os natais, participa na Festa dos Sem-Abrigo de Lisboa da organização. Celebra-se há 21 anos e decorre neste fim-de-semana, na cantina da Cidade Universitária. Nem todos são sem-abrigo, mas todos são necessitados.

As portas abrem às 10.00 com a entrega de roupa até às 16.00. Os duches estão disponíveis a partir das 15.00 e até tem cabeleireiro. O jantar é servido às 19.30, tudo isto com animação a partir das 15.00.

A "tenda" onde o Pedro dorme leva 20 minutos a montar, já que é feita cm toda a precisão. Os cobertores são muitos e imagine-se que este dia não será tão penoso para ele como para os outros sem-abrigo.

Circulando pela baixa lisboeta, os termómetros marcam temperaturas entre os 2ºC e os 4,4º C, as mais baixas quando já se avança na madrugada. Vêem-se muito menos sem-abrigo do que em outras noites, mas como a Câmara Municipal de Lisboa não accionou o plano de contingência, o Metro não abriu as portas e os centros de acolhimento não tiveram uma lotação foram do habitual, estes homens e mulheres terão de estar em algum lado.

Estão em prédios abandonados, debaixo das pontes, becos mais abrigadas, cobertos por caixas, caixotes, papelões e plásticos que ninguém imaginaria que pudessem acolher alguém. "Um ou outro foi para o albergue, mas poucos. Estão cheios. Estão todos por aí. Está muito frio… mas ninguém ajuda", protesta Mafalda, 48 anos, que vive com o companheiro numa das arcadas da Almirante Reis. É o Carlos, tem 38 anos e mais não diz. Escondem a droga que consomem, presume-se que heroína. Aproxima-se um homem relativamente novo e4 que pergunta pela "garrafa". Mafalda disfarça. "Olha lá, não vês?"

A mulher diz que está na rua há oito meses, é enfermeira e que tem quatro filhos. Tem um problema de pele grave, que afirma estar a tratar. E porque é que vivem na rua? "Não há lugar nos centros, está tudo cheio. Estou à espera que nos chamem para Alcântara".

É verdade que muitos centros de acolhimento nocturnos têm lotação limitada ou ficam cheios nesta altura do ano, mas a verdadeira razão porque muitas pessoas não os procuram é dada por Brígida Balfi, 55 anos, uma "francesa, com origem italiana e nascida em Nova Iorque". "Vivo aqui porque gosto de ser livre. No centro temos de entrar até às seis, levantar às sete… estou bem aqui, ao pé destes dois amigos indianos, educados e que não se metem em vinhos e drogas. Portugal é muito bom, há sempre pessoas a dar comida, roupa, muito amigos". Dorme, há três meses, junto a uma perfumaria na Av. da Liberdade. Está vestida e tem só um cobertor fininho. Ouve-se o ressonar dos companheiros do lado, e ela não consegue dormir. O pacote de vinho de marca branca está no fim, acende mais um cigarro para aquecer.

Brígida veio para Portugal há um ano, à procura de uma amiga que casou com um português. Recebe uma pensão em França de 650 euros, mas conta que lhe roubaram os documentos, incluindo os cartões do banco, e teve de deixar a pensão por falta de dinheiro. Assegura que já foi à Misericórdia e à Embaixada da França. E promete: "Vou deixar a rua quando tiver os documentos. Volto a França!"