27.1.10

Médicos do Mundo são a voz amiga onde falta quase tudo

Luís Garcia, in Jornal de Notícias

Voluntários debatem-se com probblemas sociais gravíssimos na Quinta da Serra


Tratar de pessoas que não comem há vários dias ou que vivem amontoadas em casas com mais de 20 habitantes faz parte do dia-a-dia dos Médicos do Mundo, na Quinta da Serra, o maior bairro de barracas do concelho de Loures.

Vítor Quadé, 45 anos, entra no pequeno consultório improvisado pelos Médicos do Mundo, na Quinta da Serra, e senta-se numa cadeira. O guineense, morador da Urbanização Terraços da Ponte - a antiga Quinta do Mocho, outro dos bairros mais problemáticos de Loures -, queixa-se à enfermeira Ondina Tocha, 83 anos, de fortes dores nos joelhos, além de problemas ao nível da caixa torácica, muito agravados pelo trabalho na construção civil, que desempenhou até há três meses.

Agora, sem emprego, o imigrante está à espera de receber o Rendimento Social de Inserção. Até lá, garante, o dinheiro não chega nem para comprar os medicamentos receitados pelo médico de família, razão pela qual recorreu aos Médicos do Mundo.

"Ainda no outro dia, veio aqui um homem pedir um medicamento. Depois de explicar como se tomava, perguntei-lhe: 'Já comeu hoje?' Ele respondeu que não. 'E ontem?' 'Também não', disse", conta Ondina Tocha. "Como é que estas pessoas podem ter saúde se não têm dinheiro para comer?"

Mais de 20 dividem barraca

Casos chocantes não faltam na memória dos membros da equipa dos Médicos do Mundo na Quinta da Serra. Ondina Tocha recorda o caso de um rapaz que mal sabia falar português e se queixava de sentir dores no peito, tão fortes que não o deixavam respirar.

Quando a enfermeira descobriu onde ele morava, percebeu tudo: o jovem dividia uma barraca com mais de vinte homens.

"Já conhecíamos aquela casa", recorda a enfermeira. Uma vez, elementos da equipa dos Médicos do Mundo entraram na habitação. Nem queriam acreditar no que viam. "Entre as pessoas que ali viviam ao monte, um tinha SIDA e outro tuberculose generalizada. Eles têm sempre as portas e as janelas fechadas e vão ocupando as camas em rotação, por isso não há renovação de ar e os sítios onde dormem nunca respiram", conta.

Apesar de casos dramáticos como estes surgirem com demasiada frequência, a coordenadora do projecto dos Médicos do Mundo na Quinta da Serra, Arlete Moreira, explica que a maior parte das pessoas que recorrem às consultas de cuidados de saúde primários apresenta, a par de problemas vulgares como a diabetes ou o colesterol elevado, doenças que reflectem as vidas difíceis que leva. Lombalgias provocadas pelo trabalho pesado na construção civil, problemas respiratórios decorrentes das habitações precárias e problemas de pele originados pela falta de higiene são alguns dos males mais frequentes.

Esporadicamente, surgem casos mais graves, como tuberculoses ou doenças sexualmente transmissíveis.

Ratos na mesa do almoço

Segundo Arlete Moreira, o trabalho dos Médicos do Mundo, que, além das consultas, desenvolvem acções de informação para crianças e adultos, tem dado frutos. "As pessoas costumavam achar normal que os ratos passassem por cima da mesa do almoço ou que as crianças dormissem com a mesma roupa com que brincavam na rua. Hoje, já há muita gente informada."

A evolução só não é maior porque todas as semanas a Quinta da Serra recebe novos moradores, recém-chegados dos países africanos de expressão portuguesa, sobretudo Guiné e Cabo Verde.

Essa é, de resto, a grande ameaça que paira sobre o bairro. Apenas uma minoria das cerca de 1500 pessoas que, segundo dados da Câmara de Loures, vivem na Quinta da Serra, foram recenseadas, em 1993, no Programa Especial de Realojamento. Esses terão direito a uma habitação antes da demolição do bairro. Porém, para a vaga de imigrantes que, dia após dia, vai chegando àquele amontoado de barracas, resta a incerteza.