20.2.10

Manifestação defende "família verdadeira" mas realidade é muito variada

Por Catarina Gomes, in Jornal Público

O casal tradicional com filhos continua a ser o perfil dominante de família portuguesa. Mas muito está a mudar: um terço dos bebés já nasce fora do casamento

Tradicional e não-tradicional


"Casamento só entre um homem e uma mulher!" "Sou pai dos meus filhos! Sou marido da minha mulher." Estas são duas das frases do poster que durante as últimas semanas apelou à presença na manifestação que se realiza hoje em Lisboa. O objectivo é protestar contra a lei, aprovada dia 11 no Parlamento, que deverá passar a permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, e insistir na realização de um referendo sobre o tema.

Para poder passar à prática, a lei ainda tem que ir ao Presidente da República, que pode viabilizá-la, enviá-la para o Tribunal Constitucional ou vetá-la. A organização do evento, a Plataforma Cidadania e Casamento, vem defender o que chama de "família verdadeira", referindo-se sobretudo a casais heterossexuais casados e com filhos. Mas será esse ainda um retrato das famílias em Portugal?

Estatisticamente ainda "é o perfil dominante de família", mas esse dado nada diz sobre a forma como os portugueses chegam, cada vez, mais ao casamento e à paternidade, sublinha Sofia Aboim, socióloga da Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e autora do livro Conjugalidades em mudança.

O grande símbolo das transformações é mesmo o casamento. Os portugueses casam-se cada vez menos (decréscimo de 23,4 por cento de 2002 a 2008); quando o fazem, a maioria já não escolhe a cerimónia religiosa (apenas 44,7 por cento em 2008), e um grupo crescente de casais já coabitava antes de se casar - eram 18 por cento em 2002, subiram para 35,3 por cento em 2008.

Ao mesmo tempo, os casais deixaram de ver como essencial estarem casados para ter filhos: não eram casados os pais de cerca de um quarto dos bebés que nasceram em 2002; seis anos depois os filhos fora do casamento já chegavam a mais de um terço - "a mudança mais significativa", assinala Sofia Aboim.

Mas "o projecto de ser pai e mãe ainda é muito forte na sociedade portuguesa", nota Ana Nunes de Almeida, socióloga do ICS e uma das autoras do livro Fecundidade e Contracepção. Portugal é, aliás, "o país da Europa em que menos mulheres ficam sem filhos", completa Vanessa Cunha, socióloga e autora da obra O Lugar dos Filhos, sendo residuais os casais sem descendência.

Portugal chegou tarde a fenómenos demográficos que já se sentiam noutros países europeus, mas fê-lo "a uma velocidade vertiginosa", refere Ana Nunes de Almeida. Resultado? Mais do que outros países europeus, "a sociedade portuguesa é híbrida", coexistindo traços de modernidade e pré-modernidade em grande diversidade de formas familiares, diz.

Quando se fala de "pluralidade de estilos de vida conjugal", não se está a apontar só para a sociedade como um todo, mas para várias gerações de uma mesma família, nota Vanessa Cunha, investigadora no ICS: é possível ter pais casados pela Igreja há 50 anos, que têm um filho que vive com a parceira e decidiu não se casar mas baptizou os filhos e outro que vive com o namorado do mesmo sexo. É também dentro das famílias que se processa "uma maior aceitação social" face a formas de família "que são tão legítimas como as supostamente verdadeiras e maioritárias", reitera.

Apontar para o passado para dizer que, nessa altura sim, "a família tradicional" era modelo único também não traduz a realidade, sublinha. "A família tradicional é um modelo ideológico veiculado pelo Estado Novo. Sempre existiram outras formas de organização das famílias. No passado existia tudo o que existe hoje mas mais minoritário", reforça. "Nos anos 50 Portugal era o país da Europa com maior número de nascimentos ilegítimos, como alerta o Anuário Demográfico de 1959 das Nações Unidas", refere Sofia Aboim.

Portugal "sempre teve um peso significativo de mães solteiras, de franjas mais desfavorecidas, do campesinato", nota Vanessa Cunha. Só que hoje as famílias monoparentais têm mais peso e na sua origem passou a estar sobretudo o aumento de divórcios e separações. E há variações, algo a que chama "famílias bimonoparentais" - resultantes de divórcio com guarda conjunta dos filhos.

Se os casamentos gay se tornarem possíveis, quantos casais homossexuais seriam candidatos? Nos recenseamentos nunca se perguntou quem vive com pessoas do mesmo sexo. O Censos de 2011 será, a esse nível, uma estreia, refere Sofia Aboim. Mas num inquérito sobre comportamentos sexuais (de 2008) cerca de dois por cento responderam que coabitam ou coabitaram com uma pessoa do mesmo sexo, um número que "pode estar subrepresentado devido ao peso da estigmatização", admite. Ainda assim, não deixarão de ser sempre uma pequena minoria que não está "a invadir" a sociedade, nota a socióloga da família Karin Wall.

"Vive-se numa época de crise de valores", diz o vídeo da Plataforma, que recolheu mais de 90 mil assinaturas a favor de um referendo que foi chumbado no Parlamento. Ana Nunes de Almeida contrapõe que "os valores são é diferentes", mas há um que permanece. "A felicidade está associada à vida a dois", remata Vanessa Cunha.