24.5.10

Escadas que os separa do Mundo

Inês Schreck, in Jornal de Notícias

Retratos de quem perdeu a liberdade de sair de casa sozinho


Maria de Lurdes Martins Pereira parece uma criança a aprender a andar. Primeiro uma perna, depois a outra, com as mãos no ar à procura de apoio nas paredes e na mobília. A diferença é que não evolui, só piora. Tem 70 anos e há quatro que não sai de casa sozinha.

Vive num quarto andar no Bairro do Lagarteiro, no Porto, acessível por 53 escadas em cimento. Enfrenta-as apenas com a ajuda das filhas. Já caiu duas vezes. Degrau a degrau, demora, pelo menos, 15 minutos a descer e mais alguns a subir. Uma das pernas não dobra. De tão inchada, não se distingue o joelho e o tornozelo.

O médico aconselhou-a a andar a pé, mas o tormento da escadaria está a tornar a prescrição cada vez mais difícil de cumprir. Em Março de 2005, os serviços sociais da Junta de Campanhã pediram à Câmara a transferência de Lurdes para um rés-do-chão. "Continuava a precisar de nós, mas sempre podíamos levá-la a passear mais facilmente", comenta a filha Otília.

A Autarquia chegou a propor a Lurdes mudar de bairro para conseguir um rés-do-chão, mas a inquilina recusou afastar-se das filhas. Precisa delas para quase tudo, até para calçar os sapatos.

Preso a cadeira de rodas, não sai há anos

No próximo dia 27, Carlos Gesto, 86 anos, terá uma tarde especial. "Os bombeiros vêm buscá-lo para ir passear ao Palácio [de Cristal]", conta a mulher, Nizeta.

Há sete anos, um derrame cerebral deixou o marido confinado a uma cadeira de rodas e impedido de sair de casa. O prédio onde vivem na Rua de Cimo de Vila, no Centro Histórico do Porto, tem mais de uma dezena de degraus e tão íngremes que deixam qualquer um ofegante.

Nizeta tem 76 anos e cada vez menos força para amparar Carlos. À semana, recebe ajuda dos voluntários, mas a magra reforma obrigou-os a cortar o apoio ao domicílio aos sábados. "Ao fim-de-semana faço como posso. À noite quase que o atiro para cima da cama", conta.

Sair para passear o marido está fora de questão. "Se pudesse ia com ele até à Batalha, mas não consigo. Se tivesse um elevador para o descer e subir, isso é que era, mas somos pobres", lamenta. Dentro de casa, o espaço é acanhado e a cadeira de Carlos não dá mais de duas voltas. Do quarto para a sala, da sala para o quarto. É assim há sete anos.

No último piso à espera de ir para um lar

No último andar de um edifício a cair de podre na Rua Cândido dos Reis, no Centro Histórico de Gaia, Rosa de Lurdes Pinto, 85 anos, espreita à porta. As escadas de madeira rangem sob os pés. Com um pau na mão, qual bengala improvisada, Lurdes vai apresentando as divisões da casa e as últimas desgraças que caem do tecto. Em cima da cama ainda tem uma bacia cheia de estuque.

A limpeza fica para mais tarde porque as dores nos joelhos não a largam e fazem-na mancar. Já não sai de casa há semanas. Subir e descer aqueles 34 degraus tornou-se um martírio. Todos os dias, pede a uma vizinha ou a alguém que passe na rua para lhe levar o pão e o merceeiro carrega-lhe as compras até à porta.

Lurdes é a última residente daquele prédio que, visto de fora, parece abandonado. "Já foi tudo embora. Às vezes tenho medo, mas que hei-de fazer?", desabafa. Não parece mulher de se vergar a tristezas. Aliás, as agruras que a vida lhe reservou fazem-na rir. "Estive para casar, mas ele matou-se, olhe fiquei solteira, foi a minha pouca sorte", conta, sempre a rir.

Apesar da boa vontade dos vizinhos da rua, Lurdes sente-se sozinha e está ansiosa por deixar a casa onde passou os últimos 80 anos. Quer ir para um lar, em Santo Ovídio, para onde contribui há vários anos. Está à espera de resposta. Enquanto isso fica em casa.

Três degraus convertidos em via-sacra

Três escadas separam Álvaro de Jesus Cruz da vida lá fora. Há mais de um ano que perdeu o equilíbrio e deixou de sair de casa. Era um dos alfaiates mais conhecidos de Matosinhos. Aos 86 anos continua a viver na cave de um prédio da Rua do Godinho, mas a máquina de costura que tem ao seu lado já não trabalha como outrora.

Naquele espaço exíguo e de tectos baixos chegou a juntar sete funcionárias e a produzir "até dez fatos de homem por semana a 130 escudos cada". Álvaro tem uma perna mais pequena do que a outra e usa um sapato especial para compensar a diferença. Mas isso nunca o fez parar. "Corria e saltava por todo o lado", conta.

A falta de equilíbrio chegou há coisa de um ano, pouco depois da mulher morrer. Desde aí, as escadas passaram a ser um obstáculo intransponível e o mundo exterior perdeu interesse. Álvaro passa os dias encafuado numa salinha a ver televisão.

Fechada em casa com medo de cair na rua

Há cerca de três anos que Maria Espírito Santo deixou de sair de casa sozinha. A bengala que não larga, nem sentada, ampara-lhe as dificuldades em andar, mas a perda gradual de visão não tem remédio.

Vive num rés-do-chão da Rua de Belmonte, em pleno Centro Histórico do Porto. Não tem escadas para atrapalhar a entrada e saída de casa, mas as ruas íngremes e os passeios desnivelados e esburacados não lhe inspiram confiança. Nunca caiu, mas sabe que se acontecer, não se levanta.

Por medo e por dinheiro, Maria deixou de ir ao centro de dia. O regresso de carro ficava-lhe mais caro do que podia pagar. Fechou-se em casa, sozinha com a gata, com quem partilha todos os momentos. "Quando vê que ando com dores não me larga um segundo", avisa. Passa semanas sem pôr o nariz fora da porta. Resta-lhe a varanda, com vista sobre a cidade e os comboios a passar sobre os arcos das Devesas.