23.7.10

Pobres duas vezes

Daniel Amaral, in Diário Económico

O conceito de limiar da pobreza é relativo e convencional: corresponde a 60% da mediana do rendimento por adulto e era em 2008 de 414 euros por mês. Abaixo deste limiar, e como tal em risco de pobreza, estavam 1,9 milhões de pessoas, 17,9% do total.

Números que comparam com os 18,5% de 2007, a que correspondiam mais 62 mil pessoas. A variação foi positiva. Significa então que os portugueses passaram a viver melhor?

A resposta é não. Nada neste estudo nos permite ajuizar se o nível de vida ficou melhor ou pior. A única informação que nos é dada é que melhorou a distribuição dos rendimentos. O que de resto é confirmado por outros indicadores: o coeficiente de Gini, que mede a diferença entre ricos e pobres, caiu 0,4 pontos para 35,4%; e a relação entre os rendimentos dos 20% que ganham mais e os dos 20% que ganham menos caiu 0,1 pontos para 6 - ainda assim a mais alta da Zona Euro.

O tema merece uma explicação. Admitamos que os rendimentos de 2008, no valor de 100, tinham sido igualmente distribuídos por todos os adultos: o limiar da pobreza seria de 60% da mediana de 100 e o número de pobres igual a zero. Admitamos agora que o limiar da pobreza era 10 vezes mais alto ou 10 vezes mais baixo que o de 2008, mantendo-se a distribuição: o limiar da pobreza subia ou descia 10 vezes, mas o número de pobres seria rigorosamente o mesmo.

A dúvida persiste: as pessoas vivem melhor ou pior? O estudo não responde, mas eu fui à procura de resposta por outras vias. E os resultados são contraditórios: se usarmos o PIB ‘per capita' a preços constantes, há uma queda em 2008 e em 2009 - a situação piorou; se em vez do PIB usarmos o rendimento disponível, há uma subida em qualquer dos anos - a situação melhorou. Única certeza: o nosso nível de vida é uma lástima.

A razão por que trouxe aqui este assunto foi o último debate parlamentar sobre o estado da Nação. De um lado, cantavam-se hossanas, porque havia menos pobres em 2008. Do outro, atirava-se um "é preciso ter lata", a pensar nos imaginários pobres de 2010. Assisti a tudo, horrorizado: todos bramiam muitos números; ninguém fazia a menor ideia do que estavam a falar. Pobres duas vezes: pelas misérias da vida e pelas lacunas do saber.

É triste.