25.9.10

Os ciganos não são todos iguais

por Pedro José Barros, in iInformação

Dos 50 a 60 mil ciganos portugueses, metade vivem no Norte. Actividades ilícitas "reforçam preconceitos", mas a desconfiança é "mútua"


Aproveitando a calmaria da tarde, um grupo de mulheres e homens vestidos de negro senta-se num muro junto à sede do Futebol Clube Cerco do Porto. Apanhamos a cavaqueira a meio. José Fernandes, presidente da União Romani Portuguesa, aproxima-se com um recém-nascido ao colo e apresenta-nos os ciganos da sua comunidade. Herculano Fernandes abeira-se. Saiu do Bairro São João de Deus tinha o filho nove meses e não concebe um cenário em que fosse forçado a sair do país, como acontece em França. "É xenofobia. Por serem ciganos é que estão a expulsá-los e não é por acaso que a União Europeia está a cair em cima da França."

E se essas pessoas causarem problemas? "Os romenos não têm nada a ver. Não trabalham e não têm residência certa. Andam a pedir e têm de roubar. Se eu fosse para um país roubar se calhar tinha de sair", perspectiva Herculano, que trabalha nas feiras. José Fernandes critica a posição do PS português no Parlamento Europeu, acusando o partido de se "pôr a favor de Sarkozy" e fazer com que a "discriminação venha ao de cima". "Estão a tratar os ciganos como bichos. São seres humanos e devem ser tratados como tal." Zé acrescenta: "Os bancos não são assaltados por ciganos!"

França O desmantelamento de acampamentos e a expulsão de ciganos em França, determinada por Nicolas Sarkozy, que ocorre depois de um grupo ter atacado uma esquadra em protesto contra a morte de um jovem às mãos da polícia, reacendeu o debate em torno da comunidade. As perguntas são muitas e as respostas dificultadas pela exiguidade da informação disponível.

Maria do Rosário Carneiro, deputada do PS na Assembleia da República, coordenou o último grande levantamento a incidir sobre parte dos ciganos portugueses e que resultou num relatório de 2009 produzido pela Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura. Ao i, a deputada refere que os dados mais fiáveis apontam para 50 a 60 mil ciganos portugueses, sendo que "cerca de 20 mil estariam em situação de pobreza extrema".

José Fernandes, presidente da União Romani Portuguesa, acrescenta que no Norte vivem "25 a 30 mil" ciganos. Destes, "entre 10 e 15 mil" estão no distrito do Porto. "Vivem com dificuldade. Mais de metade vive das feiras, da venda ambulante e o negócio está mau", explica. Subsistem acampamentos, mas os ciganos portugueses moram sobretudo "em bairros sociais". Desde que o processo de sedentarização se acentuou, "a maioria" das crianças passou a frequentar a escola, embora "o sucesso não tenha sido fabuloso". Segundo o sociólogo e professor Manuel Carlos Silva, da Universidade do Minho, a escolaridade cigana é "residual" e a maioria não ultrapassa "o quarto ou sexto ano".

O presidente da União Romani liga o insucesso escolar à "falta de um tecto, de educação e ao desemprego dos pais", dizendo que muitas vezes lhes é impossível arranjar trabalho. "A discriminação está a crescer. Não vendem carros aos ciganos e ninguém nos quer como vizinhos."

Conforme se lê no relatório da comissão, os ciganos "perderam as formas tradicionais de trabalho, não adquiriram as competências necessárias à integração no mercado de trabalho, empobreceram e perderam autonomia". Alguns "passaram a dedicar-se a actividades ilícitas como o tráfico de armas e droga, o que veio contribuir para o reforço dos preconceitos".

Neste contexto, o acesso ao mercado de trabalho revela-se "praticamente fechado, com excepção do sector público - como nas câmaras, através dos POC". Alberto Melo, da Associação Cultural Recreativa Desportiva Ciganos do Porto, diz que "muitas vezes o cigano quer trabalhar, mas não tem hipótese por ser cigano".

Carlos Coutinho é cigano. Tem um irmão que "está a tirar o curso de electricista" e arranjar emprego não foi fácil. Já trabalhou na Fundação Filos e hoje ganha 629 euros como segurança no Cais de Gaia, mas vê-se "atrapalhado" para gerir as finanças. Sustenta dois filhos e a mulher não trabalha na feira. Paga 350 euros de renda e queixa-se de ter sido forçado a sair da casa do pai, quando morava no Bairro São João de Deus, para evitar uma "ordem de despejo".

Desconfiança Entre 2001 e 2006, Manuel Carlos Silva desenvolveu um estudo no distrito de Braga baseado em 2000 inquéritos a portugueses não ciganos, 200 a ciganos e 300 africanos. Constatou que "há um preconceito muito profundo contra os ciganos". Parte "considerável" das pessoas encara-os como "traficantes" e o próprio Estado "não tem feito praticamente nada para a sua integração".

Atendendo ao relatório de 2009 da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura, a relação entre ciganos e não ciganos caracteriza-se pela "desconfiança mútua". A própria comunidade cigana "desenvolveu uma cultura de resistência, fechou-se sobre si própria e auto- -excluiu-se", cultivou visões sobre os não ciganos. "Acham que as mulheres são promíscuas e que a sociedade não cuida das crianças e dos velhos".

Ricardo Gomes, do SOS Racismo/Porto, chama a atenção para o facto de ser mais difícil aos ciganos adaptarem-se "a regras e horários fixos". "Globalmente, a cultura cigana não cabe na sociedade que nos estão a querer impor." E recorda a demolição do Bairro do Bacelo e consequente distribuição dos ciganos "por três bairros diferentes" como exemplo de má intervenção. "Viviam em condições de insalubridade, mas já lá estavam há 35 anos. No dia seguinte a Rui Rio assinar o contrato de concessão do Palácio do Freixo, lembraram-se que havia lá ciganos", critica Ricardo Gomes.

"Os romenos não têm nada a ver. Andam a pedir e têm de roubar", explica Herculano Fernandes, cigano


"Muitas vezes o cigano quer trabalhar, mas não tem hipótese por ser cigano", diz Alberto Melo