19.9.10

Todos os anos, há 31 mil crianças com menos de 15 anos que morrem vítimas de homicídio"

Por Natália Faria, in Jornal Público

Há razões para optimismo: todos os anos se salvam milhões de crianças. Mas também para alarme: muitos milhões morrem e muitas crianças não são registadas


A portuguesa Marta Santos Pais é a representante especial do secretário-geral das Nações Unidas para a área da Violência Contra Crianças, depois de vários anos a dirigir, em Florença, o centro de pesquisa Innocenti, da Unicef. Com 30 anos de experiência na luta pelos direitos humanos, diz que a violência contra as crianças, sobretudo as raparigas, deve constituir um dos alvos da ONU para depois de 2015.

Na perspectiva da protecção das crianças, que balanço faz dos Objectivos do Milénio?

Houve grandes progressos. Em relação a crianças com idades inferiores a cinco anos, houve um decréscimo de 28 por cento na taxa de mortalidade. Isto significa que, a cada ano, se salvam mais quatro milhões de crianças. Também temos muito mais crianças que se inscreveram na escola, sobretudo a nível de educação primária, e uma muito maior sensibilidade perante os desafios que se apresentam à vida das crianças. Mas esta década também permitiu conhecer melhor as populações mais vulneráveis. Por exemplo, quando pensamos nas crianças que continuam a perder a vida no primeiro ano de vida, verificamos que a taxa de mortalidade infantil é superior entre as famílias mais pobres e entre as que vivem em zonas rurais, afastadas dos centros de saúde. Portanto, isto dá a indicação de que os esforços futuros terão que dar prioridade a estes grupos mais afastados. Outro exemplo é a situação das raparigas no que toca à educação: sabemos que existe menor disparidade entre rapazes e raparigas no acesso à escola mas também ficamos a saber que, entre os dez milhões que estão fora da escola, a maioria são raparigas.

Imagino que a questão da igualdade de géneros seja um combate mais difícil, porque mexe com questões culturais...

Há aqui uma convergência de vulnerabilidade relativamente ao sexo e à capacidade económica, sobretudo na Ásia do Sul e na África subsariana. As raparigas correm o risco de vir a casar mais cedo que os rapazes e as mais pobres correm um risco três vezes mais elevado de casar antes dos 18 anos do que as raparigas das famílias com maiores posses económicas. As que casam mais novas - muitas vezes por força da própria legislação e da pressão social - são levadas a abandonar a escola, porque a lei não permite que elas continuem a participar da vida escolar. Infelizmente, o que acontece também é que, entre as raparigas que ficam grávidas entre os 15 e os 19 anos, há todos os anos 70 mil que morrem por razões relacionadas com a sua gravidez. Por outro lado, as raparigas que são mães com idades inferiores a 15 anos têm cinco vezes maior risco de vir a morrer quando dão à luz do que as raparigas que casam com 20 ou mais anos de idade.

Se os próprios governos emitem legislação que, no fundo, reforça estas desigualdades...

... Que não as combate. O papel dos Estados é uma das questões que têm de ser encaradas de forma muito séria. É preciso garantir que estes adoptem, por um lado, campanhas de sensibilização que ajudem a reconhecer o papel construtivo e equitativo da rapariga e da mulher e, por outro lado, é preciso garantir a adopção de legislação que não permita qualquer tipo de discriminação, por exemplo, relativamente ao estabelecimento de uma idade de acesso ao casamento. E é preciso garantir que as raparigas possam registar-se na escola, sem correr o risco de a abandonar. Esta discriminação positiva é importante por causa da violência a que as raparigas estão sujeitas dentro do ambiente escolar. Os estudos que temos mostram que entre 15 a 30 por cento das raparigas que frequentam a escola correm o risco de ser vítimas de abuso sexual, seja por colegas mais velhos, seja pelo pessoal da escola ou pelo próprio professor.

Nalguma região específica?

Há um estudo na Suazilândia que confirmava a elevada taxa de violência escolar. Mais recentemente, um outro estudo, no Gana, reconheceu que cerca de 14 por cento das raparigas teriam sido alvo de abuso sexual. Claro que isso leva as famílias a estar muito mais abertas a encorajar o abandono escolar.

Porque estes problemas são menos prementes, se comparados com a fome e com a pobreza extrema, tendem a ser negligenciados?

Há um risco elevado de serem considerados como problemas de menor importância, também porque são emotivamente mais difíceis de abordar. Porém, não nos podemos esquecer que, todos os anos, há 31 mil crianças com menos de 15 anos que morrem vítimas de homicídio. Isso não é uma nota de pé de página: é um problema que, de forma transversal, toca todos os Objectivos do Milénio.

E depois de 2015?

A nível global, há 1500 milhões de crianças que sofrem violência todos os anos, continuamos a ter taxas elevadíssimas de raparigas que são obrigadas a casar e um número muito alto de crianças que morrem na sequência de violência, mas, como nenhum dos objectivos fixados em 2000 deu visibilidade a estes problemas, há o risco de estes serem considerados secundários. Portanto, a minha esperança é que, ao olhar-se para a agenda que terá de se seguir, sejam identificados estes novos indicadores na área da protecção dos direitos da criança.

O relatório da UNICEF também aponta o problema das crianças não registadas à nascença.

Esse é outro dos aspectos que era importante considerar porque as crianças que não estão registadas - e estima-se que haja todos os anos cerca de 50 milhões de crianças que não são registadas - é como se não existissem. Não beneficiam para efeitos de planificação dos serviços de Estado e de consideração do orçamento que é necessário para a área social de cada país, e, quando são objecto de violência, exploração ou tráfico, também não sabemos que isso acontece porque elas são invisíveis.

Estão espelhadas, por exemplo, nos 8,8 milhões de crianças que morrem a cada ano?

Não estando registadas, não fazem parte dessa estatística. O que se diz é que, nos países em vias de desenvolvimento, entre as crianças com idades inferiores a cinco anos, só metade é que são registadas quando nascem. Isto acontece porque as famílias vivem longe dos centros, não podem pagar o transporte para ir à cidade fazer o registo, ou simplesmente não percebem por que é importante fazer o registo