27.10.10

Daniel Bessa: "Que o acordo não seja uma mentira"

Joana Amorim, in Jornal de Notícias

"Quase por recurso ao absurdo, o acordo vai surgir. Espero, sobretudo, é que não seja uma mentira". Daniel Bessa não tem dúvidas de que vão ser pedidos mais sacrifícios aos portugueses e interroga-se se a proposta do PSD não ultrapassa limites do défice.

Vizinho e amigo de longa data de Teixeira dos Santos, Daniel Bessa mede bem as palavras, duras. Aprendeu a separar as águas, para poder denunciar cortes cegos, criticar a falta de transparência das contas públicas e dizer que as medidas de austeridade não ficam por aqui. E para questionar como é que há um ano diziam que o défice não era um problema. Do acordo, só espera que não resulte numa mentira. Do amigo, espera pelo dia em que deixará a pasta das Finanças, para que tudo seja como dantes.

Quais as suas expectativas em relação à reunião de hoje [ontem]? Acredita num acordo?

De Bruxelas e de quem nos financia vêm indicações de que tem de se chegar a um acordo. O presidente da República também tem sido muito claro. Mas quando olhei para os pontos de partida do Governo e do PSD, sem estarem nos antípodas, estão muito longe.

Como assim?

Primeiro, o Governo teve de reconhecer - não o quis dizer, mas está implícito em tudo o que anda a fazer - que a base em que assentou o PEC II estava errada.

E o que acha que falhou?

Esse é um dos dados mais negativos do que se está a passar. Realmente, ninguém sabe. Uma das notícias que faz hoje [ontem] manchete é que o processo orçamental português tem uma enorme falta de transparência. Há a história dos submarinos.

Que são mil milhões. Para 2,7...

Admito que tenha havido dificuldade em implementar reduções de despesa que tinham sido acordadas. Foi precisa uma operação muito mais violenta. Depois vieram as medidas que o dr. Pedro Passos Coelho impôs como condição. E eu olhava para aquelas medidas e interrogava-me se era possível cumprir o limite do défice. Porque havia...

...mais despesa

A recusa de um agravamento tão alto do IVA. E quando olho para essa divergência de pontos de partida, interrogo-me como é que vão chegar a um acordo sem que nenhum perca muito a face.

Mas já começaram a ceder...

Toda a gente sabe que, se não se entenderem, no dia a seguir passa a uma gestão controlada. Se não houver OE, o país cai imediatamente nas mãos do Fundo Europeu e do FMI. O PSD tem razão quando diz que isto não pode continuar a resolver-se por via do agravamento da carga fiscal, porque a prazo mata a economia. Mas o que está agora em jogo não é o crescimento, é a tesouraria do Estado.

E nada mais eficaz do que aumentar os impostos.

O PSD está prisioneiro desta armadilha. Neste momento, já não se trata de nada que não seja arranjar dinheiro para os cofres do Estado. Racionalmente, olhando para os dois pontos de partida, fica-se em grande dúvida sobre como é que a coisa vai resolver-se.

Então não está muito confiante...

O país não podia ter uma dupla mais madura e mais bem preparada. [silêncio prolongado] Quase por recurso ao absurdo, o acordo vai surgir. Espero, sobretudo, é que não seja uma mentira.

Como assim?

Às vezes aparecem coisas que toda a gente sabe que só são para ter uma assinatura por baixo e que não são para cumprir. Portugal tem uma longa história de propostas de Orçamento em que, desde quem os propunha até quem os aprovava, sabia que aquilo não era para cumprir. Por exemplo, quando se entra com um cenário macroeconómico que prevê um crescimento exagerado está a sobrestimar-se receitas.

Está a querer dizer que este OE é uma mentira.

Eu não estou a dizer isso. Mas sou capaz de lhe dizer, para usar um termo moderado, que o cenário macro deste OE está salgado. Não há organismo internacional nenhum que suporte um crescimento, por mais modesto que seja, da economia portuguesa em 2011.

Do ponto de vista fiscal, acha que era preciso ir tão longe?

Quando uma empresa está ameaçada de falência, as medidas que passa a tomar são todas ditadas por esse sufoco. E adopta as que não são as mais aconselhadas no longo prazo, mas que ali se justificam. E é isso que dá sentido ao agravamento da carga fiscal. Passa-se a actuar de qualquer maneira, com a única preocupação que os cofres não se esvaziem.

As parcerias público-privadas (PPP) são para congelar?

Neste momento, a situação aconselha a parar tudo. E, num prazo de três, quatro anos devia parar muita coisa, porque continuará a não haver condições financeiras.

Havendo acordo, acha que Sócrates tem condições de levar o mandato até ao fim?

As condições imediatas ficam reunidas. Depois, pelo menos no final de 2011, no momento da discussão do OE para 2012, porque só muito dificilmente é que passará um Orçamento.

Acredita na inevitabilidade de um PEC IV?

Acho que não vamos ter um PEC IV, vamos ter um V e um VI . O IV é o mínimo indispensável para cumprir a meta do défice para 2012. Eu gostava de reter a velocidade a que a situação se deteriorou em Portugal. Há um ano tivemos umas eleições onde nos foi dito que o problema do défice não existia, que não era preciso reduzir despesa nem agravar taxas de impostos, porque tudo se ia resolver com o aumento de receita trazido pelo crescimento da economia. Em menos de um ano, passamos para esta realidade, com três PEC. É preciso ser muito cândido para acreditar que fica por aqui.

Via mais receita?

Não sei. Quanto mais for pelo lado da receita, mais PEC vão ser precisos, porque mais se enterra a economia.