29.11.10

A fome de um sorriso também se mata

Ivete carneiro, in Jornal Público

No Banco Alimentar do Porto, as dádivas cresceram 25%. E os voluntários foram, na recolha deste fim-de-semana, mais um terço do que em 2009. Entre arroz e massas e leite, havia chocolate em forma de pai natal.

A mão abraça com cuidado uma preciosidade descoberta num saco daqueles que passam o crivo dos grandes géneros alimentares. Dois pai natal de chocolate, intactos da viagem, doces para um Dezembro que terá pelo menos mais um sorriso. É de António a mão, em cujo rosto a solidariedade rima com a humildade. Deposita-os com carinho na caixa dos chocolates e bombons e caramelos e gomas, uma da dúzia delas que, juntas, fazem menos de 1% das dádivas ao Banco Alimentar do Porto. São as caixas das coisas diferentes. Das coisas que fazem sorrir. A fome de um sorriso também se mata, por estes dias.

A outra fome, a verdadeira, no distrito do Porto, contava, às 18 horas de ontem à tarde, com 430 toneladas de solidariedade. Que haveriam de completar-se até às 23 horas. Em tempo de aperto, "quem pode dar está mais sensibilizado".
As contas de Rui Leite de Castro eram ainda por alto quando o encontrámos no armazém de Perafita. Esta campanha de recolha de alimentos deverá ser 25% superior à do ano passado, acredita o presidente da direcção do Banco Alimentar do Porto, voluntário no cargo e na gestão das centenas de braços que, no fim-de-semana, não pararam de gesticular, saco daqui para ali, dentro e fora desta e daquela caixa, operários benévolos. Foram 1021 no sábado, uns setecentos ontem, domingo, mais um terço do que em 2009. Metade deles repetentes. Ajudar pega-se.

Ajuda para 70 mil pessoas

Alice e Lurdes, 44 e 45 anos, vieram porque um e-mail as alertou para a ideia de "fazer algo pelos outros". E o dia-a-dia num infantário da freguesia portuense de Ramalde diz-lhes há muito que é preciso. As carências estão nos rostos dos que ajudam a crescer. E aumentaram, é um facto. "Há crianças que nos dizem que não jantaram no dia anterior, que as únicas refeições do dia são lá", com Alice e Lurdes. Que vêem-nas repetir pratos ao almoço, ao lanche. Que ouvem-nas pedir mais pão e leite à hora da saída.

"Hoje sou a menina do leite", sorri Alice. "Ela é a das bolachas". António é o menino dos pai natal. E há josés e marias e joaquins e rosas cujo papel, este fim de semana, foi arrumar o que dará para seis meses de apoio às cerca de 70 mil pessoas do distrito cujas refeições dependem do Banco Alimentar.

E não, apesar de muito válida, a iniciativa do "dia sem compras", assinalada no sábado, não se fez sentir. Uma distracção de calendário colocou-lhe em cima o primeiro dia da campanha de recolha de alimentos. Há valores que se sobrepõem e até os chocolates, bens que claramente não são de primeira necessidade, chegaram ali, no "dia sem compras".

Ou outros mimos. Azeitonas e biscoitos de aperitivo, compotas e molhos, sobremesas prontas e frutos secos. Limões do agricultor vizinho do armazém. Géneros crus e géneros pré-preparados, para as 420 instituições a quem o Banco Alimentar do Porto entrega uma média de 30 toneladas diárias de dádivas. A elas cabe estudar os casos de carência e perceber se são famílias em que se cozinha ou não. A única certeza de Rui Leite de Castro é a de que, independentemente do tipo, são mais este ano...