28.11.10

"O Banco Alimentar Contra a Fome é gerido como uma empresa", diz Isabel Jonet, um "relógio suíço"

Por Paulo Moura, in Jornal Público

O Banco Alimentar é dos mais eficazes da Europa. O seu papel pode ser cada vez mais importante, à medida que a crise se agrava. Mas tem um limite


"Pão! Não te esqueças do pão! Dá-lhes mais um bocado. Ó pá, dá-lhes o que eles quiserem!" António José Barbosa corre de um lado para o outro de um dos três armazéns do Banco Alimentar de Lisboa, com papéis na mão. "Está ali todo. Temos de despachar isto hoje". O pão de forma, em pacotes, continua a chegar ao armazém. A empresa Panrico ofereceu, porque está a dois dias de terminar o prazo de validade.

"Tenho aqui a guia, mas...", diz Álvaro Madeira, que vai recebendo do escritório as listas de alimentos a dar a cada instituição que surge, com dia e hora marcados. O pão de forma não consta de nenhuma das guias. Mas é preciso despachá-lo, por isso todos levam pão. "Há sempre os chamados "brindes"", explica Álvaro, que tem 61 anos e é voluntário.

Barbosa, de 60 anos, coordena todo este processo. Trabalha 12 horas por dia. "A minha função é dar e receber", diz ele. Supervisiona os fluxos de alimentos que chegam e que partem.

Tudo é gerido informaticamente. As instituições avisam quais são as necessidades. Os pedidos entram nos computadores do Banco Alimentar, onde também é introduzida a informação sobre os alimentos doados em cada dia. Depois, um programa especialmente criado para o efeito faz a gestão.

"Fruta fresca: 3 caixas. Peso: 9,98 kg. Iogurtes: 2 caixas. Doces e geleias: 18 caixas", lê-se na guia que Álvaro tem na mão. Em Lisboa, são cerca de 350 instituições a beneficiar de ajuda através do Banco Alimentar. Há uma rotatividade, durante a semana. Às terças, quartas e sextas vêm buscar produtos frescos, às terças e quintas as chamadas boxes, de produtos não-perecíveis.

João Sabino Pestana de França está a carregar para uma carrinha bróculos, alfaces, pacotes de leite em pó, iogurtes Yoplait - prazo de validade: 6/12. "Dantes ninguém se importava com isso, mas agora as pessoas recusam-se a consumir os produtos fora de prazo", diz ele, que é funcionário da Junta de Freguesia de Algés. A carrinha também pertence à junta e vai levar os alimentos para a Instituição Sagrada Família, que ajuda crianças e idosos. "Eu conheço as pessoas para quem levo estas coisas, diz João Sabino, de 65 anos. "Precisam disto para sobreviver. Mas se levasse mais comida, ajudaria mais pessoas".

Álvaro Madeira risca mais uns itens da sua lista. "Isto funciona como um relógio suíço." Diz isto com orgulho, apesar de só cá estar há uma semana. Quando se apresentou, perguntou-lhe Delfim Domingos, responsável pelos voluntários: "Quer vir de manhã ou de tarde?" E ele: "Sempre!" "Quando quer começar?" E Álvaro: "Já! E quero ir para a frente de combate. Não para uma secretária". Era projectista, mas estava reformado há cinco anos. Ficava sozinho em casa. "Fazia muitas coisas. Gosto de cinema. Tenho 800 filmes em casa. Mas já andava a dar com a cabeça nas paredes". Veio para aqui e a sua vida "deu uma volta total". E não precisa de um salário? "Tenho mais do que mereço", diz ele.

António José Barbosa vai-lhe dando instruções, com evidente autoridade. Era delegado de informação médica até ter vindo para cá, quando foi despedido, há 13 anos. É o primeiro a chegar e o último a sair daqui, todos os dias. "Quando fecho aquela porta, penso: cumpri o meu dever, ajudando os outros."

Mas como pode uma organização onde quase só trabalham voluntários funcionar "como um relógio suíço"? Precisamente por isso, respondem todos. E por causa da presidente, Isabel Jonet.

"O exemplo é fundamental", diz ela. "Há uma cultura do Banco Alimentar, e as pessoas vestem a camisola". Além disso, "isto é gerido como uma empresa". Mostra, no seu computador, as folhas de Excel onde são monitorizados as quantidades e preços dos produtos que entram e saem, as necessidades das instituições, o número de voluntários, os números da recolhas nas várias campanhas, e também a quantidade de alimentos recebidos por hora e por minuto em cada supermercado numa campanha, e a performance individual de cada voluntário e chefe de equipa. E até as previsões daquilo que é naturalmente imponderável, como a generosidade das pessoas.

Dias de chuva e Natal

"Sabe-se que no Natal as pessoas dão mais, sabe-se que quando chove as pessoas dão mais."

As instituições beneficiárias são fiscalizadas regularmente por uma equipa de 70 visitadores. Se não provam a sua eficácia e transparência na distribuição, é-lhes cortada a ajuda. O mesmo rigor é exigido dos 18 Bancos Alimentares espalhados pelo país. Recentemente, Jonet encerrou o Banco de Vila Real, por "não cumprir as necessárias condições de honestidade".

O sistema por si criado em Lisboa foi replicado nos outros Bancos do país. E é imitado pelos congéneres de toda a Europa, onde é considerado um dos mais eficazes.

Tudo é feito para que o Banco seja merecedor de confiança total. "Eu desafio qualquer pessoa que ofereça um pacote de leite a marcar com uma cruz esse pacote e segui-lo no seu percurso, até à mesa da pessoa que o irá consumir."

Entre os voluntários, há chefes de produto, de equipa, coordenadores de campanha, e cada um é autónomo nas suas funções. "É um sistema de liderança descentralizada e capilar."

Até o recrutamento dos voluntários obedece a normas de rigor e formalidade. À medida que se vão inscrevendo, ficam registados numa base de dados, explica Delfim Domingos, de 68 anos, voluntário. Mas são convocados para as campanhas por carta, não por email. Depois do serviço recebem uma carta de agradecimento. "Os miúdos ficam doidos com isso", diz. "Valorizam muito mais uma carta do que um email". Nada disto é por acaso.

À medida que a crise se agrava, o papel do Banco Alimentar vai crescendo em importância. O volume da ajuda pode crescer. "Ainda não chegámos ao limite das nossas possibilidades. Mas há um limite", diz Jonet. "Não podemos receber, por exemplo, mais de 12 instituições por dia. Há um limite físico para a nossa capacidade de ajudar".